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Cada passo importa: mulheres contam como romperam com relacionamentos violentos

AzMina escutou 102 mulheres para descobrir qual foi a saída encontrada por elas e o que poderia ter feito a diferença nesse processo 

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Como sair de um ciclo de violência doméstica? As respostas podem ser tão plurais quanto as histórias vividas pelas vítimas. O que costura todas elas é a certeza de que escapar não depende apenas de força de vontade ou decisão, mas de amparo social e estatal. 

Poder contar com recursos financeiros, lugares seguros, acolhimento, informação e rede de apoio é decisivo para o rompimento do ciclo violento. Perceber o movimento feito por cada mulher, assim como a resposta dada pelo entorno aos seus pedidos de ajuda, nos mostra pistas sobre o que é determinante para salvar outras vidas. 

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Para Cristie Donero, 39 anos, foi fundamental ter os amigos por perto, sem  julgamentos. Enquanto ela tentava entender o que estava vivendo em um relacionamento que se transformou, eles sempre atendiam aos pedidos de conversa. Faziam perguntas com a intenção de entender como ela estava. “Nunca me senti julgada por eles”. 

A relação de Cristie, que começou com uma pessoa apaixonada e tranquila, agora tinha ataques de controle, possessividade e cobranças. Ela lembra que nesse período sua rede de amizade lhe ajudava sem manipular ou obrigar a nada.  “Essas pessoas acreditavam que eu ia enxergar tudo em algum momento”. 

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Se distanciar do agressor

Cristie sofreu uma tentativa de feminicídio dentro de casa e decidiu romper a relação. Depois de um mês, ele a procurou novamente se dizendo arrependido. Prometeu que trataria do alcoolismo, e ela retomou o relacionamento com essa condição. O ex-companheiro se internou, então, em uma clínica para dependentes químicos em outra cidade. Como o uso do celular era proibido, eles ficaram sem contato. 

Foi quando ela conseguiu pensar no que estava acontecendo. “Sem mensagem, sem pressão, eu pude começar a ver um pouquinho de fora. Foi só assim que consegui largar dele”, conta a vítima, que é assistente jurídica e mora no Mato Grosso do Sul. 

A distância física do agressor para perceber ou escapar do ciclo de violência foi determinante nessa história e em muitas outras. “Me afastar fisicamente da pessoa foi o primeiro passo para me desvincular psicologicamente” aponta um dos mais de 100 depoimentos coletados pel’AzMina. Fugir ou mudar de casa, trocar as fechaduras, encontrar abrigo em centros religiosos e na residência de amigos e familiares também foram saídas encontradas por outras vítimas. 

Mulheres de 17 estados do  Brasil responderam a um questionário criado pelo Instituto AzMina e falaram sobre suas experiências em ciclos de violência. Os principais dados e informações relevantes, a partir das respostas recebidas, são usados nesta reportagem. As frases de algumas delas estão no decorrer do texto.

“Para sair tive que admitir para mim mesma que aquilo não ia parar.”

Confiei numa pessoa que queria o meu bem e me abriu os olhos.”

(trechos de depoimentos anônimos)

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Controle não é proteção nem cuidado

A violência psicológica é uma das formas usadas pelos agressores para dificultar que a vítima vá embora. Com ameaças, chantagens, desprezo, ironias e xingamentos, eles confundem, controlam e enfraquecem as mulheres, atrapalhando a compreensão delas sobre a realidade. Foi o caso de 90% das mulheres que responderam à pesquisa.  

O abuso psicológico aparece em praticamente todos os ciclos de violência (física, moral, patrimonial e sexual). Mas por não ter sinais claros, quase 70% das mulheres tiveram dificuldade para perceber o que estava acontecendo. Mudanças de comportamento como: ansiedade, depressão e falta de interesse em coisas que antes gostava podem indicar para pessoas de fora um pedido de ajuda. 

Em Maceió (AL), a analista de RH Sabrina Lima passou meses vendo o companheiro quebrar o celular dela, fazer ligações excessivas como forma de persegui-la, invadir o prédio dela no meio da madrugada e brigar com pessoas desconhecidas sob o argumento de que estava cuidando do relacionamento. “Quando não conseguia me proteger, que era isolar, havia essas explosões”, disse ela 

O temor de reviver as cenas agressivas fazia com que ela vigiasse o próprio comportamento o tempo todo, tentando prever e prevenir os ataques de fúria. “Deixei de ir para faculdade e de sair. Fui me escondendo.”

Esse terror psicológico, somado a naturalização de comportamentos ditos masculinos, como a demonstração de força física e agressividade, são elementos que dificultam a tomada de consciência e o pedido de socorro. De família católica, Sabrina, além de viver sua própria realidade, também assistiu mulheres de sua comunidade religiosa resignadas com as atitudes abusivas dos maridos. Como se ao aguentar tudo, elas estivessem cumprindo um teste de Deus. 

“É tipo a cruz. Cada um tem a sua e temos que rezar para que a gente tenha força para carregar.”, conta ela, relembrando o que ouvia. As crenças religiosas atrapalharam o rompimento da relação em 11% das histórias coletadas pela pesquisa. 

“Eu precisei romper com as ideias patriarcais que promovem a falsa necessidade de ser amada pelo outro e estar em um relacionamento, ainda que ruim, em detrimento do amor-próprio”

Li um livro chamado “Será amor ou obsessão”de Valter dos Santos que me trouxe para consciência várias coisas que eu não estava vendo.”

(trechos de dois depoimentos anônimos) 

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Fale com alguém de confiança 

Sabrina Lima passou uma madrugada inteira acordada, segurando uma faca, com medo de ser atacada de novo. Foi essa situação que a fez pensar que precisava de ajuda. Para romper com o relacionamento, ela compartilhou o que estava passando com alguém de sua confiança, na intenção que essa pessoa a cobrasse do término. 

“Se eu continuasse calada, não ia sair dali”. Sabrina também se ancorou em uma reflexão: “Era esse o relacionamento que eu sonhava quando adolescente? E eu mesma respondi: não era.”

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A primeira pessoa que Sabrina procurou foi uma psicóloga do convênio médico. Foi essa profissional que a ajudou a sair do ciclo violento. “A primeira sessão, eu só chorei e ela me acolheu. Saí aliviada”. 

Diferentemente de Sabrina, a busca por auxílio profissional não costuma ser o primeiro apoio buscado por mulheres em situação de violência. Em 31% das respostas recebidas no questionário d‘AzMina, a família foi o primeiro grupo acionado pelas vítimas, seguido pelos amigos, em 25% das situações.  

Oito em cada 10 mulheres esperavam encontrar acolhimento e apoio psicológico nesse contato com família e amigos. No entanto, a maioria (58%) não teve o que precisava num primeiro momento. Para 54% delas, orientações práticas e informação também teriam feito a diferença. 

“Quando peguei a centésima traição, mandei embora. Ele tentou me manipular, mas segui firme.”

“Para tentar sair do ciclo, contei pra alguém o que estava acontecendo, pois não tinha coragem de contar pra ninguém”

(trechos de dois depoimentos anônimos) 

Acesso à terapia

A terapia é citada como uma das saídas mais eficientes pelas vítimas ouvidas na pesquisa. Mas essa nem sempre é uma opção acessível para toda a população. Os atendimentos gratuitos são uma alternativa, mas apresentam dificuldades. Mulheres citam o número insuficiente de sessões e a rotatividade de profissionais. Em um lugar que deveria curar, isso leva, muitas vezes, a revitimização. 

Outros empecilhos citados pelas mulheres sobre os tratamentos terapêuticos são: falta de tempo por conta do cuidado com os filhos e dependentes, falta de recursos financeiros para o deslocamento até o lugar das sessões e até o medo de se ausentar do trabalho. Algumas mencionam ainda o despreparo de alguns profissionais no trato com a vítima. 

“Tomei consciência de que o que vivia não era normal.”

“Meu psiquiatra e meu psicólogo disseram que eu precisava dar um tempo longe, porque ele era o motivo de meu adoecimento. Fui para a casa da minha irmã.”

(trechos de dois depoimentos anônimos) 

Tempo para o rompimento

É comum as pessoas mais próximas cobrarem o rompimento da relação quando percebem se tratar de uma convivência abusiva. Mas, na maioria dos casos, isso acontece sob a ameaça de abandonarem a vítima, caso ela não aja de acordo com as soluções e conselhos oferecidos. 

Os agressores se aproveitam dessa solidão e fragilidade para encurralar ainda mais a mulher. “Sentia que a única interlocução que eu tinha era com o agressor”, diz um dos depoimentos do formulário. 

A crença de que basta querer, faz com que muitas vítimas sejam julgadas e cobradas a tomarem alguma decisão. Mas existem aspectos psicológicos, financeiros e emocionais que fazem muitas mulheres levarem um tempo para conseguirem se desvincular. O fator tempo também é importante para o rompimento. “É aquela coisa de você ir aceitando internamente para poder agir”, relembra Sabrina Lima. 

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“Tive que sair de casa com minhas coisas em malas e sacolas, meu cachorro debaixo do braço, e pedir abrigo na casa do meu pai de santo.”

“Quando ele me agrediu pela primeira vez, fui para a casa dos meus pais com meus dois filhos e pedi o divórcio.” 

“Juntei dinheiro escondido.”

(trechos de depoimentos anônimos) 

Dependência emocional

Quase 80% das mulheres relataram que não conseguiram romper o relacionamento antes por causa da dependência emocional. Segundo a psicóloga e pesquisadora de violência doméstica, Maísa Guimarães, esse não é um diagnóstico médico. “[A dependência] ainda está em discussão dentro da medicina e da psiquiatria. Não tem embasamento científico.” 

Dentro das clínicas de tratamento, constantemente, atrela-se a dependência emocional ao “transtorno de personalidade dependente”. E os sintomas atribuídos são carência afetiva elevada, necessidade excessiva de ser cuidado e validado por outras pessoas, comportamento submisso aos outros, dificuldade para tomar decisões sozinho, apego excessivo e ansiedade de separação. 

Segundo a psicóloga, Maísa Guimarães, as mulheres podem se sentir aliviadas ao identificar o termo, como se a dependência emocional explicasse o porquê de elas acharem impossível viver sem aquela pessoa e permanecer no ciclo violento. “Mas isso pode ser uma armadilha”. 

Maísa explica que, ao entender que um traço de personalidade as impediu de saírem do vínculo antes, a mulher é levada a ignorar todo o aparato e construção social machista. Há uma cultura que cobra que a mulher tenha a figura de um homem ao lado para oferecer coisas mínimas, como segurança e respeito. 

A construção social de feminilidade estimula que as mulheres sejam dependentes. Nesse contexto, “é o casamento que vai validar o lugar de importância social para a mulher, então é natural que ela tenha medo de perder esse lugar”, explica a psicóloga.  

Mulheres são ensinadas a se doarem completamente nas relações. Aprendem, desde a infância, a silenciar os próprios limites como forma de garantir o bem-estar geral.  “Não dá para falar de violência contra a mulher sem entender a complexidade desse assunto”, complementa Maísa, que também trabalha com vítimas no Espaço Acolher, da Secretaria do Estado da Mulher no Distrito Federal (DF).  

“Não me abria antes porque tinha medo de ser obrigada a tomar uma atitude e, no meio da dependência emocional, não queremos perder aquela relação.”.

“Vi que eu não tinha nenhum benefício naquele relacionamento, decidi colocar um ponto final e consegui não cair nas chantagens emocionais dele. Decidi cuidar de mim.”

 “Estava começando um curso novo, com pessoas novas, fui me reaproximando da minha família. Vi que a dependência emocional não me fazia mais refém da situação.”

(trechos de depoimentos anônimos) 

A importância do BO e do planejamento financeiro

A empreendedora carioca Cláudia Moreira, 43 anos, levou 11 anos para conseguir romper o casamento com o companheiro violento. Ela não é uma exceção. Entre as mulheres que responderam à pesquisa, 20% demoraram mais de 10 anos. Também 20% delas só conseguiram escapar depois de 5 anos.  

No caso de Cláudia, a gota d’água foi uma agressão dentro da própria casa. No dia seguinte, ela saiu decidida a fazer um boletim de ocorrência. Percorreu duas delegacias e teve de suportar o mau atendimento, mas nunca mais encontrou o ex-parceiro. 

A empreendedora se inscreveu em uma oficina de artesanato e fuxicos, dada pela Secretaria da Mulher do Rio de Janeiro, “para ocupar a cabeça e se reerguer”, disse Cláudia.  Durante uma roda de conversa, Cláudia conseguiu desabafar sobre o que tinha acontecido e foi encaminhada para a Casa da Mulher Carioca

Teve apoio jurídico, psicológico e recebeu um benefício de R$ 400 durante seis meses. “Me ajudou muito”. Hoje em dia ela usa a página do Instagram “Recomece” para ajudar outras mulheres a romperem o ciclo antes.  

A falta de recursos financeiros prejudicou o rompimento das relações em 38% das situações. Sem dinheiro, mulheres pobres se veem presas às relações, por anos, para garantir o mínimo de sobrevivência – delas e dos filhos. O auxílio em dinheiro é uma demanda já prevista pela Maria da Penha e com jurisdição nacional, apesar de não ser cumprida em todos os estados e municípios

A violência patrimonial também dificulta a saída entre mulheres de classes mais altas. Destruição de bens, roubos e bloqueio de recursos são algumas das expressões dessa violência. E as estratégias encontradas por algumas das vítimas que compartilharam suas histórias foram: juntar dinheiro escondido, pedir ajuda para traçar um plano financeiro de independência, voltar a trabalhar fora e passar em uma universidade pública para não depender do pai (agressor).

Liguei 180 e entendi todo terror que eu estava passando. Fui planejando sair, falei com minha mãe, que o expulsou de casa. Fiz B.O. e consegui uma medida protetiva.”

“Troquei a fechadura para que ele não tivesse mais acesso ao apartamento em que morávamos.”

(trechos de dois depoimentos anônimos)

Você não precisa salvar a relação

Anna Paula Nienkotter, 47 anos, ficou no ciclo abusivo por mais tempo do que gostaria pelo medo de ser julgada caso decidisse terminar. Quando finalmente deu fim a relação, o ex-companheiro entrou na casa com uma chave que tinha e a agrediu. 

Hoje Anna Paula, que é bacharel em direito, se dedica à conscientização sobre a violência de gênero. Ela criou o projeto “Não Cale a Sua Voz” para compartilhar e encorajar outras mulheres a denunciarem os agressores. Movimento que ela mesma, por vergonha, por medo e falta de apoio, não conseguiu fazer na época em que era vítima. 

“Hoje eu sei que o silêncio nunca vai ser a melhor opção.” Anna Paula também criou uma rede de psicólogos voluntários para atender vítimas que não tenham recursos para esse tipo de atendimento. O critério é que eles se disponham a atender a mulher até que ela consiga terminar a relação. Independentemente do tempo que isso leve. 

Essa ajuda foi determinante para uma vítima conseguir sair do ciclo de violência doméstica, depois de 17 anos. Ela era atendida por um programa público de saúde de Balneário Camboriú, mas por conta da alta demanda do serviço foi informada que o atendimento seria encerrado depois de 8 consultas. Anna Paula a encaminhou para uma profissional do seu projeto. Foi um ano e meio de acompanhamento psicológico até ela conseguir terminar e denunciá-lo. 

Conheça o aplicativo PenhaS

Buscando por ajuda

No aplicativo de enfrentamento à violência doméstica d’AzMina, o PenhaS, mulheres em situação de violência têm acesso a um ambiente seguro, que possibilita acesso à informação de qualidade, acolhimento profissional e ajuda. Neste 8 de março, o app inaugura uma nova funcionalidade, o “Manual de Fuga”, que irá auxiliar mulheres a traçarem um planejamento e dar passos rumo ao rompimento do ciclo de violência. 

A ferramenta automatizada conta com 130 instruções e um conteúdo dividido em cinco tópicos – Itens básicos; Segurança pessoal; Bens e renda; Crianças, adolescentes e dependentes; e passos para fuga (+transporte). As recomendações serão geradas de forma personalizada, de acordo com o contexto e as necessidades da usuária. 

Se você é mulher e está em situação de violência, saiba que há uma rede de equipamentos públicos garantidos por lei que podem te ajudar a romper com o ciclo de violência. A depender do seu território, a lista inclui delegacias especializadas, o Centro de Referência da Mulher (CRAM), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), as Defensorias Públicas (DP) e o Ministério Público (MP). 

Também é possível pedir apoio aos agentes da Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima de você. Esses profissionais podem te encaminhar para a rede especializada. Para apoio psicológico e jurídico, procure informação no Mapa do Acolhimento. E se você conhece ou está perto de mulheres que são ou podem ser vítimas: visite, converse, esteja atenta e ofereça ajuda sem julgamentos.

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Metodologia

A partir de um questionário distribuído nos canais d'AzMina durante um mês, 102 mulheres contaram suas estratégias para sair de relacionamentos agressivos. Os dados mostram o que ajudou e o que poderia ter feito a diferença. Dessas 102 mulheres, quatro foram entrevistadas, além de especialistas.

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