
*Alerta: esse texto contém relato de violência contra a mulher
Sou baiana, preta, mãe, líder de movimento por moradia, atriz e professora de Urbanismo no Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa), em São Paulo. Sou ativista pelo direito à cidade, pelo direito de ser e resistir. Filha de um patriarcado machista, separada da minha mãe quando criança, casei cedo e passei todos as violências possíveis na Bahia, tive que deixar os meus filhos para tentar recomeçar em São Paulo.
Sou Carmem Silva. Eu vivi a violência doméstica desde que sou uma filha e meu pai não admitia que as mulheres criassem os filhos, afastando minha mãe, violência velada e disfarçada de cuidado.
Depois, eu me casei cedo e passei pelo contexto da violência doméstica em todos os sentidos, tanto moral como física. Eu só consegui me libertar quando eu fugi para a cidade de São Paulo. Tive que tomar coragem também de abandonar os meus filhos, deixá-los com o meu pai e minha família para poder tentar novamente a vida, um recomeço possível.
Pode parecer um sonho, ir para uma cidade grande, mas, quando cheguei em São Paulo, também sofri outra violência, que é o racismo estrutural e ambiental. Me senti uma refugiada no meu próprio país, mesmo sendo brasileira. São várias violências que a gente sofre. Tinha o propósito de não voltar derrotada, para que as pessoas não dissessem que eu não tinha capacidade, o que seria outra violência.
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A força do coletivo
O apoio das pessoas foi importante. Quando eu fugi, eu comprei a passagem porque trabalhava, mas fui para casa de conhecidos em São Paulo. Logo percebi que eu também não poderia viver a vida inteira ali, porque não queria incomodar e tirar a individualidade das pessoas.
Fui para as ruas de São Paulo. Fui de albergue para albergue, quando conheci o movimento de moradia, aí me abre uma oportunidade de conhecimento. Nesse espaço eu senti que poderia estar, porque quem estava do meu lado tinha os mesmos problemas ou até piores. É no coletivo que veio a questão da conjuntura, esse pertencimento.
Para eu sobressair com essa oportunidade não foi fácil, primeiro tive que ter compreensão, desmobilizar a carne viva individual que só pensava nos meus problemas. Eu queria casa, trabalho, comida. Mas precisava pensar que eu, junto a força dos outros, teria muito mais sucesso naquilo que nós buscássemos.
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Escuta do Estado
O estado precisa ter uma escuta. Não existe escuta ativa do cidadão e cidadã, nós temos postos de saúde, que fazem pré-natal e a preocupação é só naquele momento até quando a criança nasce, mas e aí como essa mãe tá preparada depois? Quem faz esse apoio? Falta a educação cidadã. O Estado não prepara seus cidadãos/ãs para entender como o sistema funciona, como o próprio estado é gerido.
Nos postos que tiram documentos você poderia ter uma escuta ativa. Você tira uma carteira de trabalho, já teria um encaminhamento de trabalho, uma mulher que tem família, teria encaminhamento para o sustento da casa.
Eu não conhecia a geopolítica social, espacial e territorial da cidade de São Paulo. É dever do estado essa colocação. Embora existam vários serviços na cidade, até chegar neles e entender o funcionamento, você passa por essa total desilusão, não existe acolhimento estatal, você tem que se virar.
Como essa mulher vive no dia a dia? A violência pode não ser a física, mas a violência da conjuntura, a violência do viver e do sobreviver. Nem todo mundo tem o café da manhã e almoço, ou tem o almoço, mas não tem a janta. São várias violências que os nossos corpos sofrem.
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Saúde mental: “eu me permito ser”
Fui me tornando uma pessoa fria, porque eu tinha que ter a frieza para poder não cair nas seduções que a cidade (SP) tem. Na rua, tem a sedução da droga, da prostituição, da falta do que fazer. A liberdade excessiva é outra droga. Então, a questão mental para mim foi me concentrar, ter um foco.
Me dei conta que, infelizmente, a gente nunca tá completamente livre da violência, porque ela não vem só nos relacionamentos. A violência também vem do Estado e das pessoas, que praticam muitas vezes racismo estrutural. Acho que o que muda agora é que eu realmente me permito ser Carmem Silva.
Eu me permito estar onde acho que devo estar. Reconheço quem é Carmem Silva e como que tenho que proceder. Eu trouxe todos os meus filhos para São Paulo, depois de ficar separada por quatro anos, hoje eles têm suas famílias e são independentes. Tenho família em Salvador e São Paulo, já tô na cidade há mais de 30 anos.
Hoje, o que digo para uma mulher que está vivendo com um abusador é que não tenha receio de sair de casa, não se prenda a coisas materiais, porque isso você recupera. Os seus filhos, você pode pedir ajuda a um conselho tutelar, tem várias instituições que te protegem, você como mulher e mãe.
Existe agora muita informação que na minha época não tinha. Abdiquei de tudo, inclusive dos meus filhos, para poder sustentá-los e de fato dar uma vida digna a eles. Eu não tinha como trazer nada, só a roupa que eu ia vestir. As coisas materiais a gente recupera, a vida não.
*A produtora de jornalismo d’AzMina Ester Pinheiro entrevistou Carmem Silva para construir este texto em primeira pessoa.