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18 de março de 2024

“Não tem outro culpado além do nosso pai”

Apesar de estar passando por tudo isso, minha mãe conseguia fazer as pessoas se sentirem bem ao seu lado

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Neurice, mãe
Arte: Giulia Santos (foto arquivo pessoal)

*Alerta: esse texto contém relato de violência contra a mulher

A minha mãe sempre viveu na peleja, era trabalhadora e, apesar de todas as dificuldades que passava na sua vida, continuava forte. Ela se mantinha assim porque queria conquistar o melhor para mim e meus três irmãos. Mas não apenas isso, ela também buscava a melhoria para todo mundo, por isso era militante do Movimento Sem Terra (MST).

Era liderança, ia nas manifestações, ficava acampada na porta do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – já ficamos até acampados dentro de um curral com as vacas. E depois da divisão das terras, continuou lutando no assentamento Dom Roriz, em Minaçu, no norte de Goiás.

Sua grande paixão era a agricultura. Ela deixava a casa para ir capinar e plantar. Essa é uma lembrança muito forte que tenho dela. Quando eu ainda era pequena, sempre a via com uma touquinha na cabeça e roçando. Uma parcela da terra no Dom Roriz era só formação de pasto, e o sonho dela era ter um pomar, e ela, sozinha, começou a plantar. Um pedaço inteiro ela capinou na enxada e na foice!

Eu até ficava brava quando a via fazendo isso, por causa dos problemas de saúde que ela tinha, mas estava no sangue dela, era impossível fazer ela parar. Quando fiquei mais velha, isso mudou, a sensação passou a ser de orgulho. Quando a gente vê tudo o que ela conseguiu plantar, enche o coração da gente de alegria. Esse é o grande legado dela: a conquista da terra. O pomar ainda tá lá, mas não conseguimos voltar ainda para vê-lo, porque é uma lembrança boa, mas também é bastante ruim.

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“Ele era uma pessoa agressiva”

Minha mãe sempre dizia que quando a gente era pequeno, nosso pai era uma pessoa agressiva, ela já até relatou de vezes em que ele bateu nela, até quando ela estava grávida. Quem salvava eram os amigos mais próximos. E aí depois que fomos crescendo, sempre víamos muita briga, nada de agressões, mas eram muitas as brigas, com muita opressão, ameaças e ciúmes. Um convívio perturbado. 

A gente nunca presenciou ele agredir ela, não sei se agradeço ou não por isso, porque teria sido o estopim para tomarmos atitudes mais sérias. Talvez pelo fato de não termos muito estudo, sermos jovens do interior, sem muita informação, não fizemos nada para impedir, somente dar conselhos para ela sair de lá e vir morar conosco. 

Ela ficou sozinha lá no Dom Roriz, após a separação, porque eu e meus irmãos conseguimos entrar na universidade federal e passamos a morar mais perto da faculdade. Mas a separação foi bem conturbada. Eu lembro de ver minha mãe chorando, falando que ele tinha batido nela, tinha tentado matar ela e foi aí que começou a separação. Eu fiquei sem reação, paralisada.

Durante a agressão, ele deixou uma marca de mordida no braço da minha mãe que ficou para o resto da vida dela. Toda vez que eu via aquela marca eu lembrava daquele dia e da sensação de impotência, de não ter podido impedir aquilo. A gente fica se culpando um pouco por não ter feito mais, deveríamos ter apoiado mais, ter pegado a causa dela e sido mais forte. A gente sempre pensa isso, né? Que é uma coisa que poderia ter sido evitada. Ela tinha muito medo dele.

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Chegou a prestar queixa

Minha mãe até chegou a prestar queixa, mas depois pediu para retirar por causa das ameaças dele. Eu presenciei uma dessas ameaças de morte. Mas depois que ela faleceu, descobrimos que a queixa não tinha sido retirada inteiramente, pois chegou um novo delegado em Minaçu que deu prosseguimento a todos os inquéritos e ele foi notificado. Ele chegou a mandar mensagem para mim, falando que tinha que pagar advogado caro. Acho que uma das causas dele ter feito o que fez foi o inquérito ter sido aberto. 

Foi um vizinho que ligou e noticiou. Ela tinha marcado uma viagem para vir para Goiânia no dia que faleceu. O mototáxi que ia pegar ela no Dom Roriz estranhou a demora dela, entrou na casa e viu o corpo. Nós quatro ainda vivemos com uma sensação de muita tristeza, que nunca vai passar. Principalmente de impotência, porque o julgamento ainda não foi concluído e a gente tem muito medo de não ser o final que esperamos.

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Só temos uma mensagem dela antes de falecer avisando que ele estava lá e os policiais não conseguiram achar outra prova. Não temos comprovação de que foi ele. Então, a gente tem muito medo de não ter resolução. Embora ele estivesse sempre ali sondando ela, temos medo dele ser inocentado. Mas para nós quatro não tem outro culpado além do nosso pai. 

Quando penso nela, lembro da alegria que ela transmitia para todo mundo. Apesar de estar passando por tudo isso, ela conseguia fazer as pessoas se sentirem bem ao seu lado. Eu tento lembrar disso, isso me deixa em paz. Ela também sempre me dizia para não desistir, não sei se por saber que ia embora desse mundo, mas essa é uma frase que me dá força para continuar.

*A analista de comunidades d’AzMina Natali Carvalho entrevistou Paula Torres para construir este texto em primeira pessoa.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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