Composta por 129 deputados e 17 senadores declaradamente evangélicos — e apoiada por mais de 220 deputados e 60 senadores —, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) monitora cerca de 9 mil proposições que considera serem de “conteúdo nocivo”. A informação é do atual presidente da Frente, deputado Silas Câmara (Republicanos-AM) que assumiu em agosto, sucedendo o deputado Eli Borges (PL-TO).
Segundo Câmara, sua prioridade é monitorar proposições já existentes. “Não vamos abrir debate sobre nenhuma pauta. Temos quase 70 mil proposições legislativas na Câmara e no Senado, das quais 9 mil delas a gente monitora por ter conteúdo nocivo à sociedade, à família e à vida, de liberação de drogas ou modificação de hábitos sociais que vão de encontro às nossas bandeiras”, afirmou Câmara à Revista AzMina.
Embora não apresente uma metodologia para definir os projetos acompanhados, Câmara indica que entram nesse “pacote” iniciativas que contrariem a moral cristã e conservadora. Sabidamente, direitos sexuais e reprodutivos – incluindo o aborto -, direitos de pessoas LGBTQIAPN+ de todas as idades e medidas que afrouxem punições associadas ao consumo de drogas consideradas ilícitas. Apesar do alegado foco nos projetos em tramitação, em 2023 a FPE segue apostando na agenda conservadora.
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O “Além do Plenário”, pesquisa do Instituto AzMina e do Mulheres Negras Decidem, entrevistou 42 parlamentares federais para entender suas posições sobre gênero e raça entre abril e julho de 2023. Nossa equipe também realizou um levantamento histórico sobre 105 parlamentares de diferentes grupos políticos, com mais de 40 categorias de análise, como identidade de gênero, escolaridade, votos nas últimas eleições, doações de campanha e dos partidos, reeleição, relação com movimentos sociais, papel de liderança, proposições legislativas e discursos em plenário. Nos parágrafos a seguir, destrinchamos a atuação de Câmara e da FPE no Congresso.
A atuação incisiva nas comissões especiais do Congresso é parte do combate da Frente ao “conteúdo nocivo”. Estrategicamente, os evangélicos conseguiram peso nas comissões que abordam questões de costume, defesa à vida e família. A frente conta ainda com parlamentares católicos, com quem compartilham a pauta conservadora. “Em qualquer grupo que o Congresso formar para debater qualquer assunto, escreve aí: lá estará um cristão”, disse Câmara.
Contra a transparência na internet
Uma das atuações importantes da bancada evangélica no primeiro semestre de 2023 foi a oposição ao PL 2630/2020, conhecido como “PL das Fake News”. Segundo Eli Borges, a proposição destrói a liberdade dos evangélicos, “sobretudo de pregarmos tudo aquilo que está escrito na Bíblia Sagrada”.
Em seu 11º artigo, o projeto obriga os provedores de serviços na internet a prevenirem e combaterem a disseminação de conteúdos ilegais sobre crimes contra o Estado Democrático, atos de terrorismo, instigação a suicídio, crimes contra crianças e adolescentes, racismo, violência contra a mulher e infração sanitária em situações de emergência de saúde pública, como foi a pandemia de Covid-19.
O argumento evangélico é de que a lei poderia levar as plataformas a banir a reprodução de versículos bíblicos. A informação foi compartilhada até mesmo por parlamentares, como o deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR). O relator do projeto na Câmara, Orlando Silva (PCdoB-SP), afirmou, na época, que a censura à Bíblia é falsa, já que o texto não cita versículos do livro cristão. Mesmo assim, parte da bancada evangélica repercutiu intensamente o conteúdo desinformativo nas redes sociais. A tramitação do PL 2630/2020 foi paralisada por falta de acordo e o texto deverá ser alterado.
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Crenças financiadas
Um levantamento do Instituto de Estudos da Religião (ISER) sobre a identidade religiosa dos deputados federais da Legislatura 2023-2027 apontou que 45,4% se declaram católicos. 16,2% se dizem cristãos, e 14,8% (76) evangélicos. Espíritas e afrorreligiosos somam 0,6% cada, e uma parlamentar declarou espiritualidade indígena (0,2%).
Segundo o relatório, a autodeclaração ‘cristão’ é estratégica, pois “alcança católicos, evangélicos e aqueles sem religião definida, mas que de alguma forma se identificam com as moralidades e valores cristãos”. Evangélicos somam 14,8% dos deputados eleitos em 2022. Agrupada, a bancada cristã chega a “96 parlamentares eleitos – 95 em exercício, 18,51% da Câmara Federal”. A meta da FPE era ocupar 30% do Congresso em 2022. Dos 23 partidos na Câmara, 19 são da FPE. Só PL, do ex-presidente Jair Bolsonaro e maior bancada na Câmara, tem 85 deputados no grupo.
Entre os 105 parlamentares que foram alvo da investigação história do “Além do Plenário”, o acesso a recursos eleitorais se demonstrou bastante associado ao perfil religioso dos parlamentares. Na amostra, cristãos de todas as denominações – incluindo católicos – receberam 71,2% dos recursos de fundo partidário, contra 28,2% de candidatas(os) sem religião e 0,7% para pessoas afrorreligiosas. No total dos valores arrecadados, cristãos ficam com 73,5%, eleitos sem religião, 26% e afrorreligiosos 0,5%.
Disputa de liderança
No início do ano, Eli Borges e Silas Câmara travaram uma disputa pela presidência da FPE. Segundo apuração da Folha de S.Paulo, integrantes da Frente temiam que Câmara fosse “afável demais” com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Câmara nega o conflito, e diz que a questão está pacificada. Embora compartilhem valores, a pesquisa “Além do Plenário: Gênero e Raça no Congresso Nacional” mostra que Câmara e Borges têm perfis diferentes.
Político experiente, Silas Câmara é da Assembleia de Deus, está no sétimo mandato e já liderou a bancada evangélica em 2019. Do Acre, mas com carreira no Amazonas, diz mirar nos “interesses do Amazonas e seu povo”, em especial incentivos econômicos à Zona Franca de Manaus. É titular nas comissões de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional e de Minas e Energia.
Sua influência na região Norte passa pela Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Amazonas (IEADAM) e pelos negócios da família. Sua mulher, Antônia Lúcia (Republicanos-AC), está no terceiro mandato como deputada federal pelo Acre. O irmão, pastor Samuel Câmara, é dono da Fundação Boas Novas, que controla vários negócios, incluindo uma faculdade e a Rede Boas Novas (RBN), com sinal de TV aberta em 24 estados, além de alcance nacional por satélite.
A lista de investigações envolvendo a família é longa. A mais recente terminou em acordo em 2022. Segundo acusação do Ministério Público Federal, Silas Câmara teria cometido peculato, entre janeiro de 2000 e dezembro de 2001, ao se apropriar dos salários de 14 secretários parlamentares — a famosa rachadinha. Os servidores sacavam parte dos valores e depositavam em contas do parlamentar ou de um secretário. O deputado também teria dado cargos públicos a empregados particulares.
Em 2022, num acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), confessou que recebeu indevidamente parte dos salários dos servidores. A um dia da prescrição do crime, o ministro Luís Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal (STF) validou o acordo e estabeleceu multa de R$ 242 mil para encerrar o processo.
Apesar de adepto de discursos conservadores inflamados, os conservadores o escolheram para tentar diminuir as rusgas com os petistas e aumentar o diálogo com o governo. Conhecido como “raposa velha do Centrão”, ele tem fama de conciliador, diferente do antecessor, Eli Borges.
Ainda assim, ele afirma que o governo tenta continuamente “dar pernada no Legislativo”, e usa como exemplo a Resolução 715 do CNS. Segundo Câmara, o texto que “dar hormonização de crianças de 14 anos, drogas, aborto”, e quebra a laicidade do Estado colocando terreiros como “porta de entrada para o SUS”. Citando as informações sem contexto, o deputado dissemina desinformação sobre políticas públicas de saúde, que entende que deveriam seguir “a lógica da sociedade, que tem 94% de cristãos com hábitos e costumes do cristianismo”.
O levantamento “Além do Plenário: Gênero e Raça no Congresso Nacional” mostra que, na última legislatura, Câmara não fez discursos na tribuna sobre temas caros à bancada que preside, como gênero, aborto, igualdade salarial pessoas trans e direitos das mulheres. Seu último discurso na casa contra o aborto é de 2012. Em seu perfil no Twitter, o deputado se manifestou pela última vez contra o aborto em 2020, e postou apenas duas vezes sobre racismo, a última em 2016. Apesar de ter uma página bastante ativa no Instagram, o parlamentar posta pouco sobre esses temas.
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Já seu antecessor, Eli Borges – ex-PSDB, PMDB, PROS e Solidariedade -, já foi vereador de Palmas e deputado estadual por Tocantins, e está no segundo mandato na Câmara. Pastor da Assembleia de Deus Ministério Madureira, bolsonarista radical, se posiciona fortemente contra o aborto — mesmo nos casos legais —, a “ideologia de gênero” e a descriminalização da maconha para fins medicinais. Paralelamente, defende o homeschooling, e a isenção de impostos para os templos.
Às AzMina, o autointitulado “deputado da família e do agronegócio” disse que seu objetivo como titular na Comissão da Mulher é “defender o direito à vida”, que ele acredita justificar a proibição do aborto em casos de estupro. Borges ainda descreve os termos raça e gênero como “um absurdo que criaram”.
A atuação é intensa e estratégica, mas considerando o desempenho legislativo, levantamento do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB, 2022) revela que a FPE se saiu pior que a média da Câmara. De 2019 a 2023, 44% do total de matérias aprovadas na Câmara sobre “finanças e orçamento” são assinadas por membros da frente. Em “administração pública” e “direitos humanos”, esses percentuais são de 31% e 19%, respectivamente. Só 6% das leis sobre “saúde” foram iniciativa dos evangélicos. Os números confirmam a estratégia relatada por Câmara: foco na obstrução e muito barulho nas redes sociais.