O que é pornografia? Por que a pornografia comercial é limitadora? Pode existir pornografia feminista? Batemos um papo sobre estes e outros assuntos com Eliane Robert Morais, professora de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP). Ela estuda os papéis sexuais na literatura brasileira e mundial desde quando era estudante de graduação, nos anos 1980 — quando estudar erotismo na literatura causava estranheza, ainda mais se feito por uma mulher.
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Você escreveu um livro inteiro para explicar “o que é pornografia”. Mas seria possível definir pornografia nas breves linhas de uma entrevista?
A pornografia é uma espécie de fome. Como tal, ela pode ser saciada de diversas maneiras, seja com um salgadinho industrializado, seja com um banquete. E, claro, com tudo o que há entre um e outro…
Na introdução aos “120 Dias de Sodoma”, o marquês de Sade parece confirmar isso, ao escrever: “trata-se da história de um magnífico banquete – seiscentos pratos diferentes se oferecem ao teu apetite: vais comê-los todos? Não, seguramente não, mas essa prodigiosa variedade alarga os limites da tua escolha e, extasiado com a ampliação das possibilidades, certamente não te queixarás do anfitrião que te presenteia. Escolhe e deixa o resto sem reclamar. Conta esse resto simplesmente por não te agradar. Imagina que ele possa encantar aos outros e sê filósofo.”
Acho que a passagem diz tudo… Ao apresentar seu livro como um banquete, Sade lembra ao leitor que a pornografia literária funciona efetivamente como um “cardápio de paixões”. Genial, não é?
Ainda nessa linha, qual seria a diferença entre pornografia e erotismo?
Bem, para o senso comum, o pornográfico é o que “mostra tudo”, enquanto o erótico é o “velado”. Contudo, para o estudioso do erotismo literário, essa distinção é falsa, senão moralista.
A rigor, livros como os de Sade, de Georges Bataille, de Glauco Mattoso ou de Reinaldo Moraes são muito mais obscenos do que a pornografia comercial de Bruna Surfistinha ou de “50 tons de cinza”, por exemplo. A diferença entre eles não está no grau de obscenidade, mas na composição formal.
Ou seja: o valor de um texto nunca se mede por sua moralidade, mas por sua qualidade estética.
Se a distinção entre “velado” e “mostrar tudo” não diferencia o erótico do pornográfico, essa diferença mora na sua qualidade literária?
Claro! Num ensaio escrito por ocasião da proibição de seu Trópico de Câncer, em meados dos anos 1930, o escritor norte americano Henry Miller escreveu: “não é possível encontrar a obscenidade em qualquer livro, em qualquer quadro, pois ela é tão-somente uma qualidade do espírito daquele que lê ou daquele que olha”. Para o autor, essa qualidade do espírito estaria intimamente relacionada à “manifestação de forças profundas e insuspeitas, que encontram expressão, de um período a outro, na agitação e nas ideias perturbadoras”. Ou seja, o bom livro obsceno é aquele que consegue traduzir esse poder de perturbação — e só a literatura de qualidade é que chega lá…
Por que você começou a estudar este assunto?
Comecei a me interessar pelo tema no início dos anos 1980 quando, motivada pelo feminismo, decidi estudar o imaginário da pornografia. Ainda na graduação, junto com minha amiga Sandra Lapeiz, ganhei uma bolsa da Fundação Ford, para estudos sobre a condição feminina. Nossa proposta foi pesquisar os papéis sexuais na literatura brasileira da segunda metade do século XX, em textos mais erotizados.
Estudamos Sade e escrevemos, juntas, um volume da Coleção “Primeiros Passos” da editora Brasiliense, chamado “O que é pornografia”, que saiu em 1984. Acabei fundando para mim um inesgotável campo de pesquisas que cultivo com grande paixão. Daí para a frente, estudei outros autores franceses (Georges Bataille, Pierre Louÿs, Apollinaire…) e pouco a pouco fui explorando esse continente que é erotismo literário e conhecendo escritores como Aretino, Nabokov, Henry Miller, até finalmente “descobrir” o Brasil – e a notável erótica brasileira que me cativou.
Em uma entrevista você disse que a pornografia comercial captura o desejo. O que seria isso?
A pornografia comercial tenta se impor de maneira única sobre desejos que são singulares. Estranho muito que livros como os de E. L. James, autora dos “50 tons de cinza” sejam, às vezes, comparados às melhores produções da ficção sexual. A meu ver, não há nada mais equivocado que tal associação: bem adequados à sensibilidade contemporânea, os romances da autora inglesa e seus congêneres jamais criam um mundo sexual autônomo, onde prevalecem os desregramentos da imaginação, mas preferem conformar suas fantasias ao que está na ordem do dia, sejam os signos mais óbvios do consumismo, sejam as bagatelas do “politicamente correto”.
O que sobra é pouco: uma sexualidade conformada às exigências da ordem social; um erotismo reduzido às demandas da utilidade. Muita coisa se perde. Para começar, perde-se a possibilidade de contemplar o vazio que fundamenta todo excesso erótico genuíno. A saber, o vazio primordial que está na origem da nossa existência, da nossa imaginação e das nossas fantasias mais singulares.
Nesse sentido, a pornografia comercial pode ser alinhada a um empenho da indústria cultural que trabalha obstinadamente para saturar, até a exaustão, esse vazio, alienando-nos do contato com seus perigos, seus horrores e também suas maravilhas.
A tralha midiática oferece um repertório fechado e pronto de imagens, que banaliza e reduz o poder subversivo do sexo.
Você começou primeiro a estudar feminismo e posteriormente a obra do Sade. Como foi esse encontro entre a literatura erótica e o feminismo ?
Para ler Sade, dei um passo atrás no feminismo. Intuí que ler Sade com um olhar feminista não ia dar certo, seria redutor. Mas o feminismo foi muito importante para mim, porque me permitiu a ousadia de, sendo mulher, ler Sade e escrever sobre “essas coisas”.
Mesmo no ambiente acadêmico esses assuntos ainda são tabus para as mulheres?
Quando comecei a me interessar pela erótica literária, nos anos 1980, havia poucos pesquisadores que trabalhavam com o sexo e o desejo nas humanidades. A rigor, creio que esse interesse, de um ponto de vista mais geral, foi realmente motivado pelo feminismo e por outros movimentos que levantavam a bandeira da “liberação sexual”. Hoje as coisas mudaram, ainda bem, e há muitos trabalhos interessantes sendo produzidos em universidades. Não vejo nenhum tipo de constrangimento para quem faz essas pesquisas.
Tampouco eu, mesmo no passado, nunca me senti censurada, mas muitas vezes estranhada, o que é diferente… Pesquisar autores por vezes considerados “malditos” sempre causa certo estranhamento, sobretudo quando são muito obscenos. Mas esse estranhamento também é bom, pois nos obriga a refletir e a rever pressupostos – e preconceitos!
Podemos analisar literatura erótica com um viés feminista? Por que?
O erotismo é uma dimensão essencial da nossa humanidade. De todos, sem exceção. Ele está presente na vida de quem o pratica, de quem diz não praticá-lo, de quem pratica muito e de quem pratica pouco, não importa onde, quando ou com quem. Em outras palavras, ele nos coloca diante do mistério da existência, queiramos ou não. E, justamente por ser misterioso, o erotismo se torna matéria de todo o tipo de discurso, do mais sublime ao mais chulo, do mais poético ao mais estereotipado.
Creio que o olhar feminista nos faz um grande trabalho quando denuncia os discursos preconceituosos, mas é preciso tomar muito cuidado para não virar uma patrulha, pois erotismo é fantasia e, como tal, supõe a liberdade de expressão. Um dos nossos maiores desafios é perceber o tênue fio que separa essa liberdade do preconceito.
É possível fazer uma “pornografia feminista”?
A mulher esteve por muito tempo à margem do universo literário, pelo menos no mundo ocidental. O que não significa necessariamente ausência de produção, mas sim clandestinidade e repressão! Ou seja, muito do que se produziu talvez não tenha chegado às mãos do público leitor, o que torna difícil qualquer afirmação a respeito de uma erótica feminina antes do final do século XIX, quando começam a surgir publicações de autoras mulheres. E isso aconteceu também no Brasil, e de forma ainda mais tímida.
O que me chamou a atenção ao pesquisar para a “Antologia da poesia erótica brasileira” que acabo de publicar foi a expressiva presença de poetas do sexo feminino praticando a lírica erótica a partir dos anos 1970: falo de Ana C., Angela Melim, Hilda Hilst, Maria Lúcia dal Farra, Adélia Prado, Alice Ruiz, Josely Vianna Baptista e Claudia Roquette-Pinto, e outras. São, sem exceção, excelentes poetas. A meu ver, essa é a melhor maneira de se produzir uma “pornografia feminista”!
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