Atenção: A reportagem abaixo mostra trechos explícitos de conteúdo misógino e transfóbico. Optamos por não censurá-los porque achamos importante exemplificar como o debate é violento na internet, como a violência política contra mulheres se espalha pelas redes e é sexista em suas formas, como podemos identificá-la e quais termos foram direcionados às candidatas trans e travestis ofendidas.
O debate político que candidatas trans e travestis tentaram travar nas redes sociais durante a campanha eleitoral acabou sequestrado por conflitos ideológico-partidários, violência política, debates sobre segurança pública e disputas sobre representatividade de grupos historicamente minorizados. Levantamento do MonitorA revelou que as interações de usuários com as candidatas reproduzem o cenário de polarização política nacional. Comentários transfóbicos somam uma camada adicional de violência.
O observatório de violência política online – que reúne InternetLab, Revista AzMina e Núcleo Jornalismo – avaliou o discurso direcionado a 11 candidatas trans e travestis na campanha para o Congresso Nacional (confira a metodologia ao final da reportagem). As interações com as candidatas trans se concentram em torno de temas já populares no cenário político atual, barrando a conversa sobre outras pautas e projetos.
Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil teve, neste ano, 78 candidaturas trans. O MonitorA acompanhou as interações com 11 delas, entre as quais, três que se elegeram: Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), como deputadas federais, e Linda Brasil (PSOL-SE), como deputada estadual. Alexya Salvador (PT-SP), Atena Roveda (PDT-RS), Benny Briolly (PSOL-RJ), Biana Nunes (MDB-AL), Rafaela Esteffans (MDB-AP) e Robeyoncé Lima (PSOL-PE) serão suplentes. Paula Benett (PSB-DF) e Thabatta Pimenta (PSB-RN) não se elegeram.
Com 256,9 e 208,3 mil votos, respectivamente, Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) serão as primeiras mulheres trans a ocuparem cadeiras na Câmara Federal.
A defesa de partidos e candidatos progressistas foi o principal gatilho dos ataques às mulheres trans que tentavam cargos no legislativo. E, apesar da corrida eleitoral violenta e polarizada, parte importante dos tuítes e comentários que as mencionam foi ocupada por mensagens de apoio e acolhimento às candidatas.
Entre ataques e manifestações de apoio
A dinâmica das interações com as candidatas se deu de maneiras diferentes nas redes sociais analisadas. No Instagram, a pesquisa identificou cinco grupos de palavras ligados às candidatas, especialmente Hilton e Salabert, e às eleições em geral, que se concentram em manifestações de solidariedade diante das violências sofridas por elas.
Expressões como “força”, “se cuida”, “coragem” e “resistência” aparecem principalmente para Salabert, em referência a ameaças de morte de que foi vítima em agosto. Em torno de Hilton, estão expressões de incentivo como “comunidade”, “unir”, “congresso”, “bancada”, “popular”, “vamo”, “simbora”, “bora”. Um grupo mais geral, distribuído entre todas as candidatas analisadas, traz ainda termos como “esperança”, “parabéns”, “incrível”, “maravilhosa”, “emocionante”, “alegria”, “orgulho”.
“O Instagram é uma rede mais acolhedora, de modo geral, nas publicações orgânicas. No dia a dia, dificilmente chega mensagem de ódio, tanto nos comentários quanto inbox. O algoritmo é bem fechado na bolha que nos apoia. Diferente do Twitter, que é mais aberto. É raro uma publicação minha que não receba respostas de ódio lá”, comenta Salabert.
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No Twitter, o MonitorA coletou inicialmente 62 mil tuítes, mas a análise se concentrou nos 6 mil que incluíam termos potencialmente ofensivos. Nessa amostra, as interações hostis com as candidatas trans e travestis se concentraram em três grupos: polarização política e ideológico-partidária; segurança pública e violência política; e representatividade, identidade e grupos minorizados.
O primeiro reúne narrativas comuns na campanha presidencial: desafios do próximo governo federal na economia, educação, saúde e corrupção, além de menções a Jair Bolsonaro (PL), Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT). Em seguida, o segundo grupo de termos trata de segurança pública e violência política, discutindo episódios ocorridos fora da internet e a pauta armamentista. No terceiro e último, a conversa é sobre representatividade de grupos socialmente minorizados, com ataques e manifestações de apoio às candidatas. Essa separação indica a existência de grupos fechados a certos debates. “A aproximação entre a disputa ideológica e a violência política não surpreende, já que nestas eleições é difícil falar em política sem pensar em violência”, comenta Rafaela Sinderski, doutoranda em Ciência Política pela UFPR e responsável pelos monitoramentos de ataques e violência de gênero contra jornalistas na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Fernanda K. Martins, diretora do InternetLab, antropóloga e uma das responsáveis pelo MonitorA, concorda. “Os assuntos não se misturam nos discursos dos usuários, porque fora das redes também aparecem muito separados. Há ainda uma longa trilha para que temas relacionados a grupos historicamente marginalizados se misturem ao que lemos socialmente como política geral.”
Várias faces de transfobia
A pesquisa mostrou ainda que os usuários do Twitter apostam no discurso de transfobia para atacar o posicionamento ideológico das candidatas trans e travestis.
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Para entender o teor dos discursos ofensivos, o MonitorA analisou uma amostra de mil tuítes, selecionados aleatoriamente entre os 6 mil que traziam termos potencialmente ofensivos. Dentre eles, 8,2% (82 tuítes) foram considerados de fato ofensivos. Muitas vezes, as agressões usam a própria linguagem do universo trans de forma desrespeitosa, sem xingamentos ou ataques diretos. Em alguns casos, a transfobia aparece ao chamar travestis de “ele”, ou homens trans de “ela”, ou mais agressivamente em termos como “mal resolvida”, “ser indefinido”, “aberração”, “macho” e “viadinho”.
“Um dos desafios da moderação de conteúdo sobre populações LGBTQIAPN+ é considerar as peculiaridades desses grupos, inclusive no tratamento e identificação. Usar um pronome masculino não necessariamente vai levantar uma bandeira avisando que há um problema. O contexto se torna essencial para identificarmos se há ou não transfobia”, explica Fernanda K. Martins.
Duda Salabert conta que essa troca de pronomes é um ataque frequente às candidatas trans, e que muitas vezes é planejado. “É tão comum que a gente acaba naturalizando, faz parte da linguagem. Mas eu considero essas ameaças durante o período eleitoral, a violência política e a transfobia, como uma coisa só: é uma violência política de gênero e é orquestrada. Eu, inclusive, sofri ataques do próprio campo da esquerda que faço parte. E considero transfobia porque, dos muitos candidatos do PDT, a violência foi só pra mim”, ressalta.
Ainda que o Instagram seja considerado um ambiente mais pacífico, também há ofensas e insultos na plataforma. Thabatta Pimenta (PSB), vereadora do município de Carnaúba dos Dantas (RN) e candidata não eleita a deputada federal, viu os ataques transfóbicos aumentarem dentro e fora da internet durante a campanha. “Depois que fui vítima de transfobia em um shopping, quando não me deixaram entrar no banheiro feminino, postei um vídeo no Instagram contando o que tinha acontecido e fui muito atacada. Estava em campanha e foi muito difícil. Resolvi parar de ler os comentários. Nem e-mail eu abri mais depois”.
Antes de ser eleita, Thabatta já era influenciadora digital bastante reconhecida regionalmente, e diz que a violência online contra ela aumentou muito durante a corrida presidencial. “Os ataques de transfobia são os piores. Antes do problema com o banheiro, eu recebia alguns ataques, mas poucos, pela questão ideológica, de apoiar o Lula (PT)”.
As candidatas também veem os ataques como ações coordenadas de grupos conservadores de direita ligados ao atual presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL). “Acontece, também, de perfis bolsonaristas se juntarem para derrubarem nossas contas. As que não são verificadas sofrem mais”, denuncia Pimenta.
Salabert concorda: “A maior dificuldade nessas plataformas é que as ferramentas de diálogo, as opções de denúncia, são limitadas. Meu perfil é verificado e, mesmo assim, raramente minhas denúncias são acolhidas”. Ela acredita que o processo automatizado de moderação de conteúdo desfavorece as vítimas, pois equipes e algoritmos são falhos na identificação de episódios de transfobia. Um exemplo é a postagem de imagens de pessoas trans antes da transição por grupos feministas radicais. “A gente denuncia como incitação ao ódio, mas quem avalia não vai conseguir entender porque – afinal, é uma foto minha. Faltam ferramentas mais eficazes de denúncia para transfobia”, relata.
Fernanda K. Martins explica que as tecnologias também podem ser discriminatórias, e um dos motivos é a presença limitada de pessoas LGBTQIAPN+, mulheres e pessoas negras nesse campo de trabalho. “As necessidades de pessoas trans e travestis não serão as mesmas se comparadas às de pessoas cis. Essa diferenciação precisa ser considerada pelas políticas de moderação de conteúdo das plataformas”, complementa.
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Dos 82 tweets considerados ofensivos ou contendo insultos, somente seis estão fora do ar. Alguns foram excluídos pelos autores, outros estão em contas suspensas. Os outros 76 ataques seguem online. Dos 20 tweets classificados como transfóbicos, somente um foi excluído ou teve a conta do usuário suspensa.
Redes sociais como amplificadores
Depois dos comentários transfóbicos, os insultos, como “hipócrita” e “ridícula”, são a segunda maior categoria de hostilidade (18 tuítes), seguidos por xingamentos com termos como “imbecil”, “burra” e “jumenta”, que promovem o descrédito intelectual das candidatas (15). Os relacionados à ideologia política (12) usam termos como “militonta”, “psolenta” e “petista nojenta”. As ofensas misóginas (8) acusam as candidatas de fazerem “mimimi”, entre outros comentários ofensivos.
Os insultos e ofensas a candidatas trans amplificam uma violência já letal fora da internet, especialmente no país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo, segundo o relatório da Transgender Europe. Os ataques são agravados por características específicas das plataformas, como a vida longa dos conteúdos. “Cada nova exposição a um ataque pode ser uma forma de revitimizar, seja agora ou daqui a dez anos, quando a publicação pode vir à tona de novo. Ela pode receber ameaças que, mesmo que não se concretizem, têm impactos gigantes na vida das mulheres”, completa Sinderski.
Foi o que aconteceu com Duda Salabert, que recebeu quatro ameaças de morte nos primeiros dez dias de campanha, e outras quatro na reta final, todas por e-mail. A agora deputada federal eleita trabalhou nos últimos dois meses vestindo colete à prova de balas e com segurança reforçada. Em um dos e-mails, recebeu um link com um site que detalhava como seria morta. “Essas ameaças de morte foram feitas para desarticular a campanha, para me desestabilizar. Foi uma ação calculada por gente que entende de política, porque foram justamente em momentos importantes de uma campanha: o começo e o fim. Foi orquestrado para intimidar nossa ação política”, afirma.
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Nesse contexto tão violento, as manifestações de apoio de eleitoras(es) e simpatizantes nas redes aparecem para equilibrar o jogo político. “Eu venho de alguns traumas, mas vejo na política um lugar para poder trabalhar, então, eu foco e não penso nessa violência”, relata Thabatta Pimenta.
Além das experiências das candidatas, a presença de comentários e tuítes de endosso também ajuda a entender as dinâmicas das redes. “Perceber que as candidatas são alvo de transfobia, mas que há pessoas solidárias, é importante para vislumbrar como as redes sociais podem abrigar diferentes pontos de vista. As diferenças entre o Twitter e o Instagram mostram que não podemos generalizar a experiência nas redes sociais. É preciso um olhar atento à diversidade de interações”, complementa Martins.
Metodologia
Entre 17 de agosto e 2 de outubro, foram coletadas 75.851 menções no Twitter e 23.487 comentários em posts de Instagram de 11 candidatas monitoradas. Para a primeira etapa, a análise léxica, foram eliminados tweets e comentários repetidos, posts que traziam apenas nomes e números de candidatos, linhas que traziam apenas gírias, emojis, caracteres especiais e os nomes com as @ mais citadas. Assim, foram analisados os restantes: 62.254 tuítes e 12.158 comentários do Instagram.
O conjunto de tuítes e comentários passou por uma análise léxica automatizada com o software Iramuteq, que permite gerar gráficos de Análise Fatorial de Correspondência, composto por nuvens de palavras estatisticamente relevantes. Essa etapa permitiu identificar os temas predominantes no debate que incluía as candidatas no Instagram e Twitter. Também se observou como as palavras e assuntos se relacionam nos conteúdos monitorados. Esse tipo de análise contribui para identificar as “bolhas” de conversas nas redes sociais.
A segunda etapa foi uma análise individual de mil tweets, selecionados aleatoriamente entre os 6 mil com palavras ofensivas. Esta etapa buscou identificar sutilezas e nuances dos discursos não contempladas no léxico.
Foram monitoradas as seguintes candidatas:
Alexya Salvador – São Paulo – PT – Suplente
Atena Roveda – Rio Grande do Sul – PDT – Suplente
Benny Briolly – Rio de Janeiro – PSOL – Suplente
Bianca Nunes – Alagoas – MDB – Suplente
Duda Salabert – Minas Gerais – PDT – Eleita por QP
Erika Hilton – São Paulo – PSOL – Eleita por QP
Linda Brasil – Sergipe – PSOL – Eleita por QP
Paula Benett – Distrito Federal – PSB – Não Eleita
Rafaela Esteffans – Amapá – MDB – Suplente
Robeyoncé Lima – Pernambuco – PSOL – Suplente
Thabatta Pimenta – Rio Grande do Norte – PSB – Não Eleita