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6 de novembro de 2015

Quando minha aluna me pediu em casamento

"Hoje, graças a um pedido inesperado de casamento, durmo com a sensação boa de que podemos fazer isso ser diferente, um pouquinho a cada dia, mas podemos"

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O divã, hoje, é da Ana Carolina Lass Violante

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“Garotas amam garotos”, diz o apontador da garotinha

“P rofessora, eu quero casar com você!” – disse minha aluninha de quatro anos, durante uma aula.

Sorri, dei um abraço nela e disse que não poderia casar com ela porque eu era muito velha. Ela riu, me pediu o giz de cera laranja. A vida seguiu, os outros alunos ouviram o diálogo com a naturalidade que ele merecia e continuaram pintando seus desenhos.

Por que eu não disse pra ela que eu também sou menina e que menina não casa com menina? Porque não é da minha conta, nem da sua, com quem ela vai querer se casar e se vai querer se casar.

Pra quem não sabe o que quer dizer “heteronormatividade” e o que ela representa de ruim, resolvi escrever este texto.

Leia mais: O duro caminho das pedras coloridas

A foto acima é do apontador de uma aluna minha de oito anos. Sim: oito anos. Mas e daí? Ela (e todos os outros alunos da idade dela) estão muito preocupados com a nota que vão tirar na prova, a brincadeira que vai ter no intervalo e se vai ter jogo ou não no final da aula. Não passa pela cabeça deles, em nenhum momento, a vida amorosa e a futura vida sexual. No entanto, o apontador dela já repete, prematura e diariamente, quem ela deve amar, mesmo que em silêncio.

Crescemos sendo bombardead@s pela ideia de que “meninas amam meninos”. Não fosse só a complicação de não ter nenhum menino ouvindo que “meninos amam meninas” e sim que “meninos pegam meninas”, existe a heteronormatividade que tanto tolhe a tod@s nós.  

Qualquer criança que não se encaixe nesse padrão passa a se sentir desconfortável consigo mesma e com seus sentimentos depois de umas certa idade, mesmo que não saiba explicar o porquê. Após alguns anos ouvindo essa ideia repetidamente, a coisa toda passa a ser uma verdade interna: a heterossexualidade é a norma.

O que as pessoas são, o que elas sentem, não vai mudar: heterossexuais, homossexuais, bissexuais, transexuais, etc. vão continuar sendo o que são, só seus sentimentos em relação a si mesmos e aos outros vão ser melhor ou pior “administrados”, a depender do quanto a pessoa internalizou a tal norma.

Se uma menina não se encaixa nesse padrão, vai se perguntar o que há de errado com ela, já que tem até apontador de marca de revista famosa dizendo quem ela deve amar.

E um garoto que goste de meninos também vai se sentir deslocado e poderia (mesmo não sendo trans) se questionar a respeito de seu gênero: “Já que meninas amam meninos, será que sou menos menino por isso?”. Observação importante: NÃO há problema algum em ter esse questionamento ou mesmo concluir que se é trans, desde que não seja uma conclusão forçada por conta  de uma imposição da sociedade e NÃO é isso que acontece com pessoas trans. Ser trans não tem necessariamente nenhuma relação com ser gay e ser gay não tem a ver necessariamente com ser trans.

Se você, que está lendo isso, é heterossexual e/ou cis (o contrário de trans), te peço empatia e reflexão. Pra que fazemos as crianças passarem por isso?

Pra que estabelecer um padrão de destinatário de um sentimento tão gostoso quanto o amor? Pra que inventar algo que possa fazer com que crianças passem a adolescentes com mais questões complexas a resolver do que a própria adolescência?

Por que precisamos discutir gênero nas escolas? Pra você que nunca pensou nisso, obviamente porque se encaixava nessa “norma”, eu digo: como você se sentiria se até o material de papelaria te apontasse o dedo e dissesse que o que você sente é inadequado, vergonhoso e feio e que, por isso, deve ter algo de errado com você?

No final das contas, tudo isso (e vários outros tipos de preconceitos) giram em torno da ideia absurda de que há um padrão a ser seguido, de que não somos seres humanos diferentes uns dos outros e com todas as particularidades que nos fazem ser quem somos. Isso é heteronormatividade e esses exemplos são só a ponta do iceberg de um assunto bastante complexo e que envolve todas as pessoas, não só quem não é heterossexual e cis.

Afinal, em que tipo de sociedade você quer viver? Qual o limite de felicidade que você quer estabelecer para seus filhos? Qual o limite para ele/ela ser verdadeir@ com seus sentimentos, pra descomplicar a vida? Espero que você queira que eles sejam felizes tanto quanto a vida lhes permitir ser e não tanto quanto uma “norma” lhes disser para ser.

Brigo todos os dias com o mundo pra que meus alunos – e futuramente meus filhos – não tenham que se preocupar com uma bobagem tóxica como a heteronormatividade e possam ser felizes como são. Trabalhar com criança pode ser muito frustrante em alguns momentos e trazer uma esperança gigantesca em outros.

Hoje, graças a um pedido inesperado de casamento, durmo com a sensação boa de que podemos fazer isso ser diferente, um pouquinho a cada dia, mas podemos.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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