Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.
Ninguém percebeu que eles tinham chegado e ela revirava a terra, entediada, plantando árvores que nunca vingavam. Queria construir um pomar novo e o caseiro Tião – o único a quem dava ouvidos nos dias solitários – dizia que bebê de planta era semente. Era ele que aparecia, de fininho, com os carocinhos de acerola secos, as cascas de jabuticaba podres. Maria Vicentina desconfiava de tanto caridade, apanhava os restos sem se comover. Olhava cheia das suspeitas para os outros homens da fazenda e até para Pedro, porque tinha certeza de que o cachorro infeliz andava cavoucando os canteiros. Batia no bicho com o chinelo. Depois se arrependia e sufocava as costelas peludas. Não tinha sido feita para plantadora. Nem queria arder assim de raiva.
É que estava cansada. Talvez até estivesse velha.
Quando desistiu do trabalho do dia e voltou para a casa grande, atolada de terra até os joelhos e sem se importar em sujar o chão, encontrou os visitantes perdidos no meio da sala. Primeiro, ela. Uma mulher curvilínea de cabelo claro e pele marrom. Presença imponente com a boca vermelha. A desconhecida a olhou de canto de olho, querendo chorar, como se a conhecesse desde sempre. Só entendeu que devia ser a mãe de Arthur quando ele mesmo apareceu, despenteado e feliz. Eu não disse que voltava, comemorou, estendendo os braços.
Maria Vicentina ficou muda. Fazia tempo que a alegria não espumava assim dentro dela, suando dentro no peito de pura adoração. No reflexo da surpresa, encolheu-se de timidez diante da visita, que era a primeira para ela na casa nova. Não sabia o que fazer. Teve vergonha nos pés sujos. Da roupa rasgada. A outra empoleirava-se num salto de vidro, tão elegante.
“Entra, vocês querem beber?”, perguntou, porque isso é o que Matias dizia toda vez que chegavam estranhos.
Marcela riu. Achou engraçado o jeito empertigado da menininha, engraçado e triste, porque dava para ver a infância moída, triturada. Aceitou uma água só para poder observá-la trotando lentamente até a cozinha, limpando as mãos na roupa, projeto de gente. Desculpa o mau jeito, Marcela foi pedindo desculpa, como se precisasse.
Sentaram-se os três na mesa de jantar, bebendo água a goles milimétricos, num silêncio de morte, Arthur abraçou a menina. Único barulho era o berrar das vacas lá fora e o estalo do relógio anunciando o arrastar do tempo. O garoto continha-se para não assustar Maria com suas propostas. A mãe havia instruído, estressada porque não conseguia achar o caminho: vai com calma, deixa que eu falo com ela, e se ela não quiser vir, a gente não pode fazer nada, não pode obrigar.
Ela vai querer, resmungara Arthur, quase ofendido.
Tinham levado várias horas para descobrir o trajeto. Voltar para o passado era difícil e Marcela também não era muito boa de volante, dirigindo reta com os olhos apertados, tartaruga cuspindo impropérios para os apertadores de buzina e para o filho. Deviam ter discutido umas trezentas vezes até alcançar a estrada que ele, bom de memória, reconheceu desde o começo. Era tudo, menos estar em casa, apesar da familiaridade, do cheiro de mato.
“Onde é que está o Matias?”, Marcela questionou, pousando o copo na mesa.
“Essa hora ele não fica aqui não”, Maria devolveu, roendo a unha e olhando para baixo. Sempre para o chão. “Deve que tá matando gado. Volta só mais tarde, pra janta.”
“A gente pode comer aqui?”
“Uai. Acho que pode. Eu já tinha que começar mesmo.”
No meio da semana ele gostava de jantar e dormir cedo. Para poupar as energias, dizia, antes de se esgotar no corpo de Maria. Marcela ofereceu ajuda, ainda que não fosse assim prendada. Vicentina entortou a boca, ressabiada, mas por fim aceitou. Foi orientando onde estavam as panelas, colocando o pano na cabeça – outro dia tinha caído um cabelo na sopa, o marido não perdoava essas porqueiras. Os dedos pequenos eram habilidosos na hora de acender o fogão normal, perolado, um mimo doméstico. O de lenha é que não dava conta, explicava a menina, o Tião é que acende.
Juntas refogaram o arroz e temperaram a carne, mergulhadas em um papo raso, mas amigável. Amenidades fluídas. Arthur narrou a Vicentina as maravilhas seu quarto, do videogame novo. Ela, por invejar e ao mesmo tempo não entender do que se tratava aquelas novidades estranhas, só ouviu.
Parecia uma visita ordinária, coisa de família. Lá fora, no entanto, o carro estacionado no terreiro chamou atenção de Geraldina, lançando luz à presença estranha. Com uma bacia de verduras nos braços, governanta correu para verificar e inflou-se de susto ao encarar a desconhecida de mangas arregaçadas, mexendo o feijão com suavidade de proprietária. Sentado na cadeira, pernas abertas, o bastardinho.
“Maria Vicentina, quem é essa?”, perguntou, voz de trovão aniquilando a tranquilidade da menina.
Marcela não deixou que Vicentina a apresentasse: estendendo a mão de unhas feitas, cumprimentou a giganta, que enrugava a testa de espanto. As sobrancelhas já migravam para a raiz do cabelo. Caricatura de tensão.
“O patrão sabe que vocês estão aqui?”, questionou, arrotando indelicadeza.
“Ainda não. A gente veio ver ele e a Maria. Sabe que horas chega? Você bem que podia chamar, né?”
Marcela a observou escorregar para fora da casa, patinando com pressa para dedurar a ocorrência ao dono da casa. Riu do jeito desagradável e daquele esforço por apreço, tão conhecido em mulheres orgulhosas. Maria Vicentina é que parou boquiaberta, tremendo de susto. Geraldina odiava intrusos. Matias odiava visitas. Quase disse que era melhor que eles fossem embora.
Marcela, contudo, apreciava o frescor da coragem. Com muita sensibilidade, descansou os materiais de cozinha e segurou os ombros de Maria Vicentina. Os cabides pontudos e frágeis, pendurando avental de tristezas.
“Você quer ficar aqui?”, perguntou, muito objetiva, porque o chacoalhar do corpo impedia a menina de assimilar as coisas. “Ou você quer ir embora com a gente depois da janta?”
A proposta doeu no estômago de Maria, não pensou nela: tinha o receio de concordar e, no minuto seguinte, descobrir que era mentira. Que não era possível. Foi até por isso que não aceitou de cara, fraqueza nas pernas. Ficou balbuciando desculpas, mas não fazia mal, porque Marcela era fluente na linguagem do medo.
“Tá bom”, suspirou a mulher, no minuto em que Matias se anunciava no quintal, raivoso, um planeta em tempestade solar. “Vamos te tirar daqui.”