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20 de maio de 2016

Pequenas esposas: décimo oitavo

Estava certa de que os ferimentos traziam por si só a resposta que Beatrice esperava: não dava para trabalhar com a cara em frangalhos. Tá entendendo? Não dava para chupar com a boca arrebentada.

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Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.

 

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Foto: unsplash.com

Levou duas semanas até que Beatrice tivesse a iniciativa de investigar, pessoalmente, os buracos na agenda de sua menina mais disputada. Dias em que passou da letargia desinteressada ao pânico do pior. Marcela não tinha apresentado, no curto período de serviço bem prestado, tendência à malemolência, não parecia ser do tipo que desaparecia. Não buscaria férias improvisadas com o dinheiro extra de algum cliente. De estresse acumulado, acionou os contatos só para descobrir que, em forma de cadáver, a garota também não havia aparecido.

Intrigada, a chefe desceu de seu palácio à caça nas ruas. Convocou o motorista particular e embarcou dentro de seu conjunto de roupa mais leve, sapatilhas e óculos escuros. Não era a primeira vez que visitava alguma de suas associadas. Geralmente, chegava com a péssima notícia de que estavam cortadas da lista – anúncio que não recebiam com facilidade. O curioso é que esperava com honestidade que Marcela não tivesse escapado pelos seus dedos. Muito além do lucro: tinha visto na guria umas qualidades que as putas de hoje não estavam em condições de apresentar, era do tipo que dava satisfações sem ser necessário e amansava a cabeça, prestativa, vomitando lealdade.

Entregou ao motorista o endereço e cruzou as pernas, esperando com paciência o lento transcorrer da viagem. Tudo que orbitava ao redor da cidade planejada era longe e carecia de espaço, humanidade brotava de lugares apertados e extremos – Beatrice foi vendo a rodovia escorrer pela janela blindada com uma dó sinistra e verdadeira de quem tinha que viver nas beiradas.

Ceilândia, naquela mapa de afluentes, nascia do meio dos carros, barulhenta e preguiçosa, parecia uma cidade de ressaca. Muros grafitados, confetes molhados nas ruas e as propagandas, gritantes, na porta das lojas; um moço disfarçado de pirata que distribuía panfletos, o outro flanelinha oferecia lavagem completa por 25 conto. Lembra um pouco o interior do país, Beatrice refletia. Mais sujo, mais jovem.

As vizinhas de Marcela ainda guardavam na memória a lembrança da visita de Rodolfo – o carro com placa especial, preta e dourada, carimbada com emblema da república – e não perdoaram a chegada do novo sedã, abrindo caminho na viela como um lagarto macio e brilhante. Não menos escandaloso. Beatrice desceu com o cabelo loiro flutuando impecável, como sempre, e não pediu informação para bater na porta do barraco número 5. A casa desmantelada de Marcela. Com o dinheiro todo que ganhava, bem que podia ter se mudado.

A mãe de Arthur não atendeu, nas primeiras batidas, por achar que não se tratasse de algo urgente. De tanta insistência, resolveu sondar a visita pela janela e quase teve um acesso de pânico. A presença inabalável de Beatrice do lado de fora, de braços cruzados e confiante de que havia gente em casa, era uma cena que nunca esperaria ver nesta vida. De tanto poder, a mulher preferia a clausura: viúva de militar, queria fazer com que pensassem que estava mesmo sozinha neste mundo. Marcela temeu estar prestes a receber o anúncio da demissão. Talvez por isso, não se preocupou em se portar apresentável.

Beatrice tentou disfarçar o alívio diante da cortininha trêmula que se afastava devagar no movimento da espiada. A menina não estava morta, tampouco tinha fugido. Quando a porta se desfez de todos os trincos, ainda procurava palavras para questionar o sumiço, satisfações na ponta da língua que desapareceram quando mirou um rosto em pedaços – o lado direito crescia protuberante com a carne amarelada e o nariz flutuava igualmente inchado, ancoradouro de um lamaçal intumescido de agressão.

Vazia de medo, opressão ou ansiedade, Marcela mirou a outra sem abaixar a cabeça. Não esconderia o resultado nada perene da decepção de Rodolfo, e estava certa de que os ferimentos traziam por si só a resposta que Beatrice esperava: não dava para trabalhar com a cara em frangalhos. Tá entendendo? Não dava para chupar com a boca arrebentada.

Eu estava esperando ficar melhor, garantiu Marcela, arrastando-se até o sofá. Graças ao chute levado nas costelas, caminhar doía e, para respirar direito, só deitada de banda. Energia também tinha faltado para limpar a casa e tirar o pó dos móveis. Não se preocupou em tirar o resto da comida dos pratos, esconder a vergonha do lixo vazando pelas sacolinhas de plástico ou jogar fora as latinhas vazias de refrigerante que faziam torres no chão empoeirado. Beatrice entrou sem ensaiar repugnância. Estava chocada, uma proeza, poucas coisas ainda tinham capacidade de adoecer a sua alma.

“Quem foi”, a patroa exigiu saber.

“Rodolfo.”

“Rodolfo quem?”

“O deputado.”

A mandíbula tripartida de Beatrice tremelicou de raiva. Certeza era que aquele ali não tocava em nenhuma mais. Homens que não sabiam ser viris sem usar a força, como o marido morto, ela não suportava. Detestava quando acontecia, a covardia disfarçada de excesso, era a única transgressão de comportamento que o dinheiro não podia compensar. Ainda mais em Marcela. Sua melhor menina.

“Você foi na polícia?”, questionou.

“Claro que não.”

“Fez bem. Eles não fazem nada. Eu cuido disso. ”

Beatrice era uma mulher prática de sentidos tortos. Acreditava em sucesso, independência, liberdade, reparação. Nunca em justiça. Não a oficial. Fazia de seu jeito. Marcela, que pena, era mesmo sua melhor menina.

“Me diga uma coisa”, foi perguntando, confortável, autoritária. “Você virou puta porque quis ou foi falta de escolha?”

A resposta sempre variava. A chefe via de tudo, sabia que as histórias se multiplicavam, nunca tinha uma só. Mulheres que escolhiam servir homem, diferente das que só sabiam fazer isso, das que só precisavam do dinheiro. As putas que gostavam do ofício. Uma questão de nuances. Marcela – ela achava – era boa sem querer.

Sem resposta, a patroa insistiu. Queria saber. Para o que andava calculando, tinha que entender se valia a pena. Estava cansada de resgatar umas menininhas chorosas, incompetentes e sofridas, que depois voltavam para a esquina, para outra clientela. O mundo estava cheio dessas sem caráter (até o coração de Beatrice era torto). O silêncio de Marcela se provou condizente.

“Vamos te levar daqui. Vai sair desse buraco. Se quiser pode até trazer seu menino”, anunciou, decidida como era.

“Oi?”

Marcela só teve condição de se encolher, assustada com aquela benevolência demente e inesperada. Ela é que não via a sorte: Beatrice, quando criava afinidade, premiava a confiança. Acorrendo à porta, que já não suportava mais respirar o ar daquela casa em decomposição, a velha esperou. Depois, impaciente, ralhou pela demora.

“Mas dona Beatrice, eu estou bem aqui. Logo fico melhor e posso voltar a trabalhar como sempre”, Marcela arriscou.

“Como sempre não”, garantiu a outra, suspirando fundo de ternura indócil, o espírito gaudério crescendo em caridade – porque de pancada entendia. “Como sempre nunca mais.”

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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