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1 de julho de 2016

Pequenas esposas: último

Maria Vicentina ainda estava acostumada a acordar no horário das galinhas, por isso levantava de pés macios e ficava no escuro, esperando amanhecer e chorando baixinho. Mas chorando de alívio.

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A primeira coisa que estranhou na cidade nova foram os prédios, brotando do horizonte com as bocas espelhadas, espalhavam-se por aí em toda variedade: curvos, compridos, com braços de tigela e até em formato de bola. Teve a impressão de que o sol nascia fatiado, mas logo percebeu que era ela que estava olhando do lado errado da janela. Brasília era uma cidade para se enxergar de baixo para cima. Tinha céu em todo canto – quase lembrava a fazenda.

A casa de Arthur, que Maria Vicentina ainda não havia se acostumado a chamar de sua, também ficava em um prédio. Para subir, tinham que entrar em uma caixa de metal que chiava. No corredor cheio de portas de madeira, uma delas – a vermelha, com maçaneta enferrujada – escondia um pequeno milagre de geometria. Marcela era caprichosa e tinha disfarçado o pouco espaço com móveis certeiros. Decoração aconchegante, enfeites de porcelana e estantes de madeira.

A menina dormia na cama de Arthur – ele, todo empertigado e herói, fizera questão. Não se incomodava de voltar a dividir a cama com a mãe, tinham feito isso a vida inteira, nunca seria tarde demais para repetir. Até Marcela se surpreendera, o embrulho quente de volta aos pés, era quase como acertar os ponteiros da redenção. Voltando ao tempo, o tempo certo e gostoso do amor.

Mas o menino não permanecia criança, estava mudado. Tinha crescido três centímetros, conferira com a fita métrica do banheiro. Em frente ao espelho, fingia que fazia a barba com a espuma do sabonete e sentia os pés achatarem-se contra os sapatos. Havia perdido um pouco da esperteza aguda, da necessidade de desafiar os outros. Pensava, porque continuava sem pai para perguntar: será que é assim que a gente vira homem? Pode ser que fosse.

Maria Vicentina ainda estava acostumada a acordar no horário das galinhas, mesmo que ali não houvesse nenhuma, por isso levantava de pés macios e ficava no escuro, esperando amanhecer e chorando baixinho. Mas chorando de alívio. Marcela acordava para fazer café e dava com a menina sentada no tapete. Na cozinha, descobria que o café já estava pronto.

A pequena começava a entender que a felicidade mudava de lugar. Antes, remoendo o pouco passado, achava que só tinha sido feliz quando voava pela horta ao encalço dos irmãos: toda alegria havia ficado presa no casebre torto com cheiro de mingau de milho, um fantasma aprisionado pela má sorte. Depois foi vendo que não, o sentimento gostoso vira e mexe vinha visitá-la na fazenda de Matias, debaixo do pomar e entre as patas de Pedro, mas era que nem bicho arisco, fugia quando Vicentina tentava agarrar. Vai ver tinha medo do marido, que nem ela. Vai ver precisasse ficar confortável.

Ou vai ver o segredo era não tentar ser feliz o tempo todo.

Por enquanto, ela estava bem. Entre Marcela e Arthur, sentia-se em família, até se esquecia da antiga. A mulher bonita, principalmente, era grande fonte de conforto, apesar de não falar muito. Havia coisas e coisas que Marcela gostaria de dizer: eu te entendo, vai passar, nós vamos sobreviver. Mas nunca tinha sido mesmo de palavras. Concentrava-se nas coisas práticas, comprando roupas, sapatos, falando ao telefone com a mulher rica que a enchia de conselhos. Pintando as unhas sujas de Vicentina. Felicidade tinha cheiro de esmalte.

O apartamento era pequeno para manter um cachorro, mas Marcela aceitou que Pedro ficasse, contanto que as duas crianças mantivessem a casa limpa. Arthur, que também era apaixonado de modo irremediável pelo vira-lata, revezava-se com Maria nos passeios debaixo do prédio. Pela coleira, guiavam o cão sorridente, que cheirava das pilastras aos pneus do carro, tentando entender aquele novo mundo pelo focinho. Ele também sabia que a vida estava mudada – e que seriam felizes de tantos outros jeitos.

Todos os dias, depois do jantar, Marcela praticava as lições do curso de maquiagem – estava quase para completar o último módulo e obter o certificado. Daí poderia viver a fabricar rainhas. Com os pincéis delicados e os pós brilhantes, usava o próprio rosto de tela. Maria observava, boquiaberta, enquanto a mãe de Arthur se coloria. Um dia, timidamente, a mulher estendeu o batom: quer que eu passe em você?

O tal do batom tinha gosto de manteiga e perfume. Maria Vicentina foi se olhar no espelho do banheiro, subindo na ponta do pé, virou de lado, apertou a boca. De lábios rosas, abriu o maior sorriso do mundo. Daquele jeitinho mesmo, coroa de cabelo parafuso e olho de jabuticaba, achou-se muito linda.

****

Apesar de trabalhar na loja de cosméticos da amiga de Beatrice, Marcela ainda se encontrava com alguns clientes antigos. Não por dinheiro. Sempre cheirosos, disponíveis e gentis, eles ligavam quando estavam na cidade. Costumavam jantar em algum lugar agradável, às vezes paravam na sobremesa, sem reservas a deixavam em casa. Gostavam de conversar com ela. Sentia o maior orgulho do mundo quando só queriam conversar. Parecia até que tinha deixado de ser apenas um corpo.

Acompanhada, visitava bares com tetos de vidro e taças de cristal, divertia-se no Lago em barcos com motores rasantes. Às sextas, ia com as amigas para botequins menos dispendiosos. Dançavam forró sob luzes bregas de discoteca, bebiam cerveja aguada, lanchavam pizza aos pedaços. Livre nas quadras numéricas, sempre no salto – não perdia a habilidade de se equilibrar.

Ela ainda não sabia, mas se casaria em breve, desta vez de papel passado, feito as atrizes da novela. Dali a cinco anos, entregaria a mão a um de seus amigos reencontrado em noites insones. Não seria Rodolfo, certamente. O futuro marido não teria nada de monstro. Nem de pecador, tampouco de santo, ou príncipe. Seria honesto, caridoso.

Os homens: quando eram de verdade, justificavam todo o amor do mundo.

           ****

Em uma dessas noites ocupadas, quando chegou em casa particularmente feliz e embriagada de vinho, Marcela percebeu que Maria ainda não tinha dormido. Passou pelo quarto do filho e viu a menina encarando o teto, fiasco de gente desaparecendo no edredom. Entrou tirando os sapatos, sentou-se na beirada da cama, nem acendeu a luz.

Ternura. Tinha pela criaturinha uma ternura sem fim.

“Tem outra coisa que você quer muito e não tem coragem de me contar, né”, adivinhou, aplainando a coberta.

Maria Vicentina concordou. Já estava ali um mês inteirinho e ninguém havia se lembrado do assunto, porque era janeiro, fazia calor o dia inteiro e as crianças vagavam pelos quintais esfarelados, lambuzando-se de sorvete e rindo em outra língua. Não eram crianças cruéis, embora Vicentina tivesse medo delas, porque não enxergava naqueles joelhos ralados qualquer proximidade. Olhava para as meninas com seus celulares iluminados e pensava, de seu jeito matuto, que elas não sabiam nada sobre cuidar de uma casa e matar um frango. Sentia-se confortável nas habilidades forçadas, muito adultas, porque era tudo o que tinha.

Na tarde anterior, uma das meninas vizinhas havia resolvido ultrapassar o bloqueio de Vicentina – bicho estranho invadindo território alheio, alarme de pânico acionado. Veio perguntar seu nome. Arthur tomou as honras, furando o silêncio arredio, e acrescentou: liga não, ela não é daqui. A menina só queria saber onde estudariam os dois depois das férias, quem sabe poderiam ser colegas de ano.

Muito depois de ir longe a garota simpática, Vicentina continuou pensando na pergunta. Ninguém havia se lembrado, porque era janeiro. Ali diante de Marcela, falou baixinho, que tinha medo de que fosse tarde e proibido: queria saber o que os livros escondiam, o que se ensinava tão fácil. A mulher riu.

“Amanhã bem cedo a gente vê isso”, garantiu.

 

****

O colégio público ficava a menos de duas quadras. Maria quase não podia se aguentar nas pernas de tanta ansiedade. Ao lado de um Arthur entediado, olhou com espanto para os muros grafitados de figuras felizes, para o parquinho de canos coloridos, silhuetas estranhas, alienígenas; e o pátio comprido povoado por bancos de cimento e quadrados de giz riscados no chão. Em total aturdimento acompanhou Marcela até a sala da diretora.

De frente à escrivaninha atulhada de papel, a nova mãe começou a falar. Omitiu, é claro, alguns detalhes técnicos: após longo encontro com Beatrice para resolver as pendências burocráticas, haviam decidido que o melhor era garantir a história de que a menina era uma pequena órfã da roça, parente de um parente pobre que nem tinha certidão de nascimento. A narrativa do anonimato deu início ao processo de identificação no conselho tutelar, já em andamento. Tudo estava quase acertado.

A diretora, uma mulher bondosa de cabelo grisalho e óculos de aro redondo, espantou-se com as informações ainda assim.

“Quase treze anos e não é nem alfabetizada?”, declarou, de olhos arregalados. “Por onde essa criança andou?”

Apesar de ter sido orientada sobre a nova versão a respeito de sua existência, Maria Vicentina se esqueceu de que não podia falar. Alguma coisa na moça de bochechas gordas a compeliu a responder.

“Meu marido não me deixava estudar”, soltou.

“Seu marido?”, a diretora respirou com força. Pareceu que desmaiaria. “Você é casada, meu amor?”

“Não sou mais não”, respondeu Maria Vicentina, sorrindo largo. Naquele momento, certificou-se de agarrar a felicidade. Pegou com o coração e trancou entre os braços. Se não para sempre, seria feliz por um bom tempo:

“Agora eu sou separada.”

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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