Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.
Aquela foi a época em que Arthur sentiu o vazio. Até então considerava-se razoavelmente feliz, mesmo com todos os pequenos abalos domésticos. Havia sempre um jeito de se esgueirar dos problemas, dos choros secretos da mãe (ela não desconfiava que ele ouvia, enfiando a mão na boca dentro do cubículo que servia de banheiro), sempre uma brincadeira engraçada o suficiente. Não ali. Trocaria de bom grado o quarto novo e todos os cômodos daquela mansão aos pedaços, se acaso pudesse ter de volta a cama de casal e o casebre em Ceilândia. Se pudesse ter outra chance de mostrar para Marcela que ainda dava tempo de se endireitar. De virar homem.
O menino perambulava pelo quintal completamente sem inspiração ou interesse pelas coisas que aquele pai tardio tentava ensinar. Decidiu que não gostava do campo, da monotonia monocromática em verde. Não gostava de Matias, tampouco, com os dentes de lodo à mostra sinalizando carências. O único lugar onde Arthur encontrava algum conforto era no banco de madeira de frente para o quintal, vendo as galinhas passarem bicando o chão com interesse renovado a cada grão descoberto, ali permanecia quase uma tarde inteira, petrificado como uma estátua. Estava tão melancólico que o caseiro Tião teve pena.
Foi o funcionário que veio sacudir a criança do estupor, porque menino homem não tinha sido feito para aquele marasmo, se crescia daquele jeito virava florzinha. Chegou de mansinho e, enquanto enrolava um cigarro de palha, arrancou do bolso a relíquia antiga: em tronco de carvalho polido, esculpido em forma de Y, corda de borracha unidos em pedaço de couro, estilingue à moda antiga. Os olhos de Arthur ameaçaram brilhar.
“Era pra ser do filho meu, mas não tive. Pode matar uns passarinhos”, recomendou Tião.
Arthur agradeceu, constrangido com o presente. Não demorou a descobrir que tinha mira ruim. Pelo menos, era um motivo para praticar, tomando cuidado de manter os cotovelos retos, paralelos. Catou pedrinhas cada vez mais afiadas, peneirando entre os dedos na areia cinza. Mirava na cabeça das galinhas, que corriam apressadas. No balde cheio de água, nas andorinhas que voavam baixo, até em Pedro, o cachorro com nome de gente.
Quando acertou uma muito perto da pata traseira do cão, Maria Vicentina, de seu observatório particular, não se aguentou e saiu da cozinha.
“Pode parar com isso”, disse, invadindo o quintal com as pernas apressadas, ela que até então tinha guardado distância do novo habitante da fazenda.
“E você é quem para mandar?”
Maria Vicentina trancou o rosto. Não gostava do visitante, da responsabilidade de recebê-lo – quero que seja como um filho seu, Matias havia dito, acometido de uma vontade febril de ter família. Gostava menos ainda agora que o garoto encontrava uma ocupação muito mais divertida do que os entediantes ritos domésticos da casa grande. Invejou a graça daquele presente inédito.
“Você é ruim. Não sabe acertar nada”, desdenhou, em retorno.
“E você sabe?”
“Certeza.”
Esperava a reação natural dos meninos, Arthur virando as costas, rindo da sua prepotência de garota, que continuasse a lapidar o pouco talento de atirador. Mas ele, que não dispensava um bom desafio, ofereceu o brinquedo, estendendo o braço com interesse. Maria Vicentina olhou para os lados. Geraldina estava ocupada ralando espigas de milho para a próxima fornada de pamonhas assadas, Matias havia desaparecido no açougue, monitorando o pesar das carnes. Ela estava sozinha, parecia.
“Tá com medinho?”, zombou Arthur.
Tomando o instrumento, Maria Vicentina avaliou o comprimento do cabo, a curva esculpida na madeira, testou a elasticidade da borracha. Era um estilingue de melhor qualidade se comparado aos fabricados pelos irmãos mais velhos na chácara de baixo. Lá, o brinquedo nascia dos troncos das árvores para virar armamento de uma guerra invisível e amadora (com balas de seriguelas e pitombas, para não machucar de verdade). Aquele era quase um profissional.
Apertando o olho esquerdo para regular a precisão, Maria Vicentina catou uma pedrinha com boa aerodinâmica. Em cima da cisterna, no meio do quintal, estava o alvo: a caneca de latão que o caseiro e outros funcionários usavam para mergulhar no balde cheio de água fresca, refresco dos dias quentes. A cem metros, no mínimo, não queria exagerar. Sentiu o menino contraindo-se de expectativa, numa risada rouca que virou esgar de espanto quando ela acertou, com força suficiente para lançar o caneco em giro duplo no ar.
O ruído da lata se esfacelando no chão coroou o orgulho que ela sentiu de si mesma naquele momento.
“Faz de novo”, vibrou Arthur.
“E acertar o quê?”
“Alguma coisa que se mexe. Um passarinho.”
“Passarinho não, eu tenho dó.”
“Então acerta aquilo ali.”
Ele apontava para o volume acinzentado, com formato de bola, em cima do telhado da área de serviço. Uma concavidade que passaria despercebida aos olhos dos distraídos.
“Isso é casa de marimbondo”, respondeu Maria, cética.
“Se não consegue…”
Respirando fundo, ela topou, porque gostava mesmo de testar limites. Não soube muito bem o que estava pensando, achou que só queria impressionar. Catou outra pedra – pontiaguda, tamanho médio – encaixou na tira de couro, mirou. Meio segundo depois, enquanto chumaços de terra estouravam telhado abaixo, o zumbido disparou o alerta.
“CORRE”, gritou, largando o estilingue no chão.
Arthur nunca tinha sentido a ferroada de um marimbondo – pontadas dolorosas a produzir inchaços que duravam dias – mas não duvidou da seriedade do assunto. Fugiram dos insetos raivosos com estardalhaço, como uma perseguição de filme imaginária que terminava na cozinha, selando portas e janelas. Só pararam quando escorregaram no piso encerado, protegidos pelo escuro e gargalhando tão forte que a barriga doía. Fazia tempo que Maria não ria.
“Onde é que você aprendeu a atirar desse jeito?”, ele perguntou, assombrado.
“Meus irmãos”, ela contou, sentindo a saudade apertar, fazer um nó bem no meio da garganta. “Eu era a melhor deles.”
“Você podia me ensinar.”
Calaram-se, sentindo o peso de uma cumplicidade recente. Arthur sentou-se no chão, usando a frieza da parede para refrescar as costas, e Maria Vicentina não hesitou em imitá-lo, quase dizendo que ensinava, sim, ele até que era legal. Dali, dava para ver tufos de poeira e teias de aranha que formavam suas próprias galáxias esbranquiçadas no teto.
“Por que você namora o velho?”, ele questionou, porque tinha tempo queria saber, mas parecia indelicado chegar assim perguntando.
Ela deu de ombros, vergonhosa de responder.
“Você tem minha idade”, Arthur emendou.
Maria queria dizer que não sabia bem que idade tinha, mas não queria causar má impressão – estragar a boa impressão – do menino da cidade. Calada, ela se saía melhor, mantinha a posição de imperatriz de um pequeno reino de rancor.
“Mas… vocês trepam?”, insistiu o garoto.
Ela hesitou. Era uma pergunta estranha naquele linguajar aleatório, mas só podia significar uma coisa dita assim naquele tom de constrangimento. Não cabia mentir. Acenou de levinho com a cabeça.
“Sorte a sua”, foi o comentário de Arthur. “Eu ainda sou virgem.”
“O que é virgem?”
“Alguém que nunca trepou.”
Maria Vicentina reparou no aborrecimento do garoto.
“Eu queria ser virgem”, confessou, esperando que assim, mostrando que não valia a pena esperar por coisas que não eram tão boas, faria com que ele se sentisse melhor. Mas Arthur, olhando de lado para a menina magricela, não se sentiu confortado: sentiu foi pena.