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30 de abril de 2024

“A pequena sereia me parece ser queer pra caramba”

Como é ser um corpo transviado no mundo?

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trans-preciado
Arte: Giulia Santos
Arte: Giulia Santos

Sinto muita tristeza e raiva. Berro e me estrangulo na frente de uma multidão de rostos conhecidos. Eles passam reto.

Uma imagem em particular tem me divertido nas últimas semanas. Encontrei um desenho que fiz no início da minha transição de gênero, e a princípio não sabia o que era. Depois de olhá-lo por alguns minutos compreendi, e senti as minhas células soltando tímidas risadinhas. Tratava-se de uma sereia mastectomizada, que optou pela remoção dos seios.

Desenho de sereia queer. Foto de arquivo pessoal de Marte Wirthmann.

Essa imagem vem se desmontando e expandindo na minha cabeça. Uma sereia não possui genitais. Ela é geralmente representada com características sexuais secundárias, mas não tem vulva, nem pênis. Tem apenas fabulosas escamas reluzentes. Sim, o gênero existe para além das características sexuais, porém a ausência da genital na figura da sereia me gerou uma leve euforia de gênero.

O símbolo máximo que a cisgeneridade costuma utilizar contra pessoas trans – a genital – está ausente em um dos mais tradicionais símbolos femininos dos contos de fadas. Por isso, a pequena sereia me parece ser queer pra caramba.

Comecei a me ver nas cicatrizes da mastectomia de minha pequenina sereia não-binária, com fabulosas escamas reluzentes e a liberdade de nadar pelo mar sem um top de conchas. Sentindo o movimento das águas no peito, sem ser importunada pelos tritões. Me parece livre. Leve. O contrário do que tenho sentido hoje. Apesar de que gostaria de manter o meu clitóris. Em vez de pedir pernas para Úrsula, eu pediria um clitóris.

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Por outros masculinos possíveis

É engraçado, pois não costumo ver tantas pessoas cobrando dos próprios homens cis sobre como eles reproduzem estereótipos de gênero ou retroalimentam ideais tóxicos de masculinidade.

Nesse paralelo entre masculinidades trans e cis, não é curioso que um corpo com buceta, oprimido desde antes de aprender a falar ou andar, é o alvo predileto de críticas? Se ele pode ou não ter peitos, barba, útero? Vestir calça, bermuda, saia, vestido, camiseta larga ou regata? 

Não somos o único alvo, e nem estamos isentos de reproduzir padrões de comportamento misóginos ou heteronormativos. Mas quando penso nesse comparativo de cobranças dirigidas às masculinidades cis e trans, noto que os primeiros estão extremamente confortáveis e costumam ser muito bem recebidos socialmente. Enquanto nós, os segundos – sempre em segundo – lutamos contra o peso da culpa e da disforia que nos é infligida, por simplesmente querermos nos sentir em casa no nosso próprio corpo, voz e nome.

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“Me descobri Marte”

Em 2021, publiquei o meu primeiro livro. Neuroses de Bolso, pelo selo Hecatombe, da Editora Urutau. A publicação foi possível graças ao edital MilTons de Escrita Política LGBTQIAP+. Nos momentos finais de diagramação do livro, resolvi me apresentar, na parte da biografia, enquanto uma tímida sapatão goiana. 

Poucos meses após o lançamento, me descobri Marte, um tímido não-binário goiano, cuja sexualidade estava em expansão. O que me levou a descobrir que era, na realidade, um tímido transmasculino não-binário bissexual goiano. Nem homem, nem mulher, muito pelo contrário. Apenas Marte, apenas eu. Um corpo de vulva, peitos, quadris largos, estrias, barba cheia, pernas cabeludas e uma voz transformada pelo androgel. Nem aguda, nem grave, mas minha.

Poder ser mulher é driblar tudo que é ser homem” (frase de Debora Ribeiro na apresentação do livro ‘Quem dera o sangue fosse só o da menstruação’). Não faço ideia do que isso significa, ainda que tenha sido designado como mulher desde antes de sair das entranhas de minha querida mamãe. 

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Um corpo transviado

Vivi aproximadamente 19 anos enquanto mulher. Tenho 22. A mulher é a negativa do homem? É claro que essa frase está fora de contexto, mas me pareceu estranha. Ser o negativo de um ponto positivado. Ser um não. Suponho que este seja um dilema semelhante ao da não-binariedade. Não quero dizer que todos os processos de significação são perfeitamente coerentes. Nunca fui coerente, e me sinto muito bem enlouquecendo os seguidores fiéis da norma culta – de linguagem, cultura e gênero.

Sobre os títulos dos livros, ambos referentes à menstruação. Eu sangro das duas formas. Neste exato momento, escrevo enquanto as paredes do meu útero descascam e deságuam no meu absorvente, pregado em minha cueca. Não posso dizer que já apanhei fisicamente por transfobia, porém ela já me violentou de outras formas, me confronta diariamente. Não me deixam esquecê-la, suponho que para lembrar-me de qual é o “meu lugar”. 

Um corpo transviado sem cidadania nas nações do gênero, sem grupos sociais pré-definidos. Um estrangeiro em seu próprio corpo, navegando o mundo, e eventualmente encontrando outros viajantes. Sorrindo discretamente para os mesmos, como quem diz: “nos conhecemos através da comunhão de nossos corpos errantes.” E “ainda que nunca tenhamos nos encontrado, nossas histórias se entrelaçam. Boa travessia”.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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