Quando somos pequenas, uma brincadeira muito comum é o “faz de conta”, na qual nos imaginamos e criamos, vivemos uma realidade nossa. Eu, quando menina, amava a sensação de ser e estar num mundo que era exatamente como eu queria. Porém, surpreendentemente, as nossas vontades e expectativas infantis – supostamente as mais “puras – não são livres. Olhando bem, percebemos padrões machistas.
Não é uma coincidência que um dos imaginários mais comuns seja o de mãe e filha, no qual as meninas desempenham justamente o papel que a sociedade determina como o mais importante para elas. Ou seja, a construção social já está ali. Outro exemplo que ilustra isso muito bem é o querido imaginário da princesa.

O título nos é apresentado como a maior maravilha do mundo; as nossas heroínas são as princesas da Disney. Mas só existem duas maneiras de fazer parte da realeza: ou se nasce nesse meio ou um príncipe apaixonado se casa com você. Ou seja, o berço e o homem são o que determina se será possível a vivência do conto de fadas, tirando de você o protagonismo da sua própria história.
Mas o nosso imaginário não tem que ser uma prisão, muito menos deve ser aprisionado. Por incrível que pareça, essa mesma jaula pode vir a ser um lar. Fomos nós mesmas que construímos o castelo. Podemos acrescentar uma quadra de futebol se quisermos, fazer uma tirolesa a partir da janela da torre mais alta, demolir a construção inteira…
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Afinal, por mais contaminados que estejam nossos imaginários, sua simples existência já é muito poderosa. Nos dá o poder de ver além do que já existe, de enxergar o mundo como ele deveria ser.
Desde pequenas, sem nem saber, já estávamos (re)inventando a realidade. Para mim, crescer de verdade não é parar de sonhar, e sim passar a agir de acordo com essa visão.
Eu tenho 15 anos. Sinto nervoso ao falar isso, pois já imagino você se perguntando: “o que ela pode me acrescentar?” ou até “que moral ela tem para falar?”. Eu não sei se você já me viu na rua ou sequer se moramos no mesmo estado, se é mais velha ou mais nova do que eu. Mas o que eu tenho para acrescentar é a minha vivência, minha realidade, minha perspectiva. Uma ínfima parte do meu imaginário. E por que isso seria relevante?
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Por mais que o imaginário de cada uma seja algo muito próprio, somos todas permeadas por certas estruturas sociais. É claro que há nuances e diferenças de acordo com o seu meio, mas há muito em comum. Por isso, quando começamos a perceber os machismos que vivemos, conseguimos nos identificar cada vez mais umas com as outras, nos conectando e formando redes de apoio.
As individualidades de cada processo de desconstrução somadas vão criando um imaginário coletivo mais complexo e inclusivo. E acredito que isso é um dos primeiros passos para transformar a realidade. Realmente aprendemos com as diferenças e entendemos que não estamos sozinhas.
Eu faço parte de um movimento global de meninas pela igualdade de gênero: o Girl Up. Ele me ajuda muito a construir e colocar todo esse novo imaginário coletivo em prática. Nunca imaginei que meninas como eu poderiam se articular para realizar tantos eventos e encontros como temos feito, desde pequenos, em nossas casas, até um grande evento da Copa Feminina na sede da Globosat!
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Sim, meninas como eu e você fizemos isso. Olhando assim parece bem intimidador. “Realizar eventos” não é algo que associamos a nós mesmas. Mas é possível ocupar esses espaços, é possível ter essa voz.
É claro que houve um processo até que as meninas do Clube Girl Up, do qual faço parte aqui no Rio, realizassem eventos tão grandes. Nós não começamos na Globosat. O que de fato fizemos foi só começar, um passinho de cada vez. Nas organizações, até hoje, cada uma faz e contribui com o que consegue. Assim, vamos construindo juntas, as coisas vão acontecendo. Chega a ser inacreditável ver o resultado final, especialmente quando o processo inteiro foi algo muito próximo de nós, muito mais simples (mas não necessariamente menos trabalhoso) do que o imaginado.
Podemos sim construir e transformar a realidade. Nós somos parte dela, e só a maneira como interagimos e existimos a influencia. É muito conveniente para certos sistemas que esqueçamos disso. Internalizamos medos e uma lista de o que “dá e não dá para fazer”, enxergando essas estruturas como permanentes. Mas podemos questionar tudo isso, desmistificando as configurações limitantes que normalizamos. Pouco se fala disso, mas muitas vezes quem mais desacredita da gente somos nós mesmas. Porém, podemos nos provar que estávamos erradas, que conseguimos sim. Crescendo e compartilhando se vai muito longe.
Eu juro que nunca imaginei que estaria escrevendo um artigo em um site assim. O medo ao colocar a caneta no papel marcou cada palavra, mas cá está o texto. Ele foi elaborado por causa do Dia da Menina, 11 de outubro, o que é muito simbólico. Consegui realizar algo importante para mim, não apesar de ser menina, mas justamente devido a esse fato. E de certa forma, o texto fala exatamente sobre isso.
E nele, enxergo não só a minha voz, mas as de todas que construíram comigo, tendo consciência disso ou não, no imaginário ou na realidade. Aliás, os dois não são tão distantes quanto parecem. Aceite o meu convite de novamente brincar de faz de conta – que acontece.
Maya Goldfeld frequenta movimentos juvenis e, como estes, está sempre em movimento. Sua única constante é a mudança, e adora piadas ruins.