A pandemia está escancarando as muitas injustiças e desigualdades da nossa sociedade. E uma das que está ficando clara é o quanto mulheres não são respeitadas como sujeitos. Parece exagero, né? Mas o coronavírus está gritando na nossa cara o que já era visível antes: nossos direitos são considerados de segunda categoria.
Quer um exemplo? Para dar conta da inquestionável crise de saúde que vivemos, atendimentos médicos não essenciais foram suspensos. E nessa lista dos “não essenciais” está também o acesso a métodos contraceptivos.
Em reportagem feita em parceira com Gênero e Número e The Intercept Brasil, mostramos como a colocação de DIU foi suspensa em diversos hospitais e também tem faltado acesso a pílulas e até camisinhas em alguns lugares. Tudo isso em um cenário em que gestantes são grupos de risco do covid-19 e em que especialistas recomendam que mulheres evitem engravidar.
“Não adianta dizer para as mulheres não engravidarem, transferindo toda a responsabilidade para elas, e não oferecer orientações e métodos contraceptivos”, diz a ginecologista e obstetra Melania Amorim.
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Ela tem razão. Mas a verdade é que isso é reflexo de uma história social do Brasil onde os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são desrespeitados. A fala “não engravidem” é a versão pandêmica do “fechem as pernas” – argumento clássico dos que gostam de dizer o que as mulheres devem fazer com o corpo, sem considerar as condições que elas têm para decidir sobre a própria vida e reprodução.
Em entrevista à Revista AzMina, a antropóloga Débora Diniz disse que todo o planejamento de saúde para lidar com uma epidemia ou pandemia devia ter entre suas prioridades os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
E lembrou também que há quatro anos encaramos uma epidemia enorme que impacta a vida de mulheres e crianças até hoje e a história foi a mesma. Pior: respostas em relação a isso ainda não foram dadas. Estou falando do zika vírus, que desde 2015 gerou quase 3,5 mil casos de crianças com síndrome congênita e segue afetando outras – e as mulheres que são as principais responsáveis pelos cuidados dessas crianças.
Quando a epidemia do zika estourou, foi movida uma ação exigindo direitos para as pessoas afetadas pelo vírus. Entre os pedidos, maior acesso à informação e contracepção para essas mulheres e também direito ao aborto para as mulheres infectadas que estão em sofrimento mental.
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Em meio à pandemia do novo coronavírus, o Supremo Tribunal Federal colocou em pauta a votação da ação. Sobre isso, Débora disse que “é hora do STF responder o que significa uma epidemia para a vida das mulheres”.
Bem, o Supremo respondeu e deixou claro: a vida das mulheres seguem não significando muito em uma epidemia. O órgão julgou essa ação nos últimos dias e decidiu rejeitar a ação, sem nem analisar seu mérito.
Débora Diniz luta pelas vítimas de zika e também pela descriminalização do aborto no Brasil há anos. “Quando uma mulher pode decidir quando, como e com quem ela vai ter um filho, ela toma uma decisão sobre seus projetos de vida presentes e futuros, não são sobre maternidade”, diz.
O presidente Jair Bolsonaro disse na quarta que enquanto ele governar, “não haverá aborto”. Ignorando que a realidade é que as mulheres abortam clandestinamente, e são as mais pobres e vulneráveis que morrem por causa dessa falha do Estado.
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Afinal, vivemos neste país onde falta informação, falta contracepção, as mulheres não podem decidir e depois são abandonadas para criar sozinhas seus filhos, afetados pelo zika ou não.