“Uma boa descrição de mim durante a infância era ‘A Gi é tímida’. O que não me contaram era que uma timidez que te faz sofrer a cada interação social não é normal. Ninguém sabia, mas cada conversa iniciada por mim tinha sido repassada na minha cabeça no mínimo dez vezes: o que falar, quais as possíveis respostas, o que responder. Só que as pessoas não seguem o roteiro da sua imaginação, o que era um problema. A solução era falar cada vez menos, deixar que os outros falassem, apenas concordar. Eu não sabia, mas ali já estava a minha ansiedade querendo controlar tudo, e me deixando passiva, me tirando de cena sempre que não conseguia.
Assim, eu fui falando pouco e guardando muito para mim, criando um mundo de pensamentos, vontades, desejos e medos, ao qual ninguém tinha acesso.
Aos nove anos de idade conheci o pânico pela primeira vez. Meu avô havia falecido, vítima de um câncer no pulmão, e a ideia da morte parecia mais real agora. Porém, ela não fazia sentido para mim, pensar na finitude era extremamente agoniante e me causava um desespero enorme que eu não sabia descrever na época. Como tudo que era desconhecido e que eu não podia controlar, eu sentia um pavor enorme.
Hoje sei que era algo como uma grande descarga de adrenalina percorrendo o meu corpo em segundos, mas na época não sabia dizer o que estava acontecendo comigo — apenas que era a pior sensação que eu já tivera e, portanto, não queria continuar tendo. Decidi afastar todo pensamento que pudesse me causar essa sensação. Por algum tempo eu consegui reprimir isso, até que chegou a adolescência.
Minha autoestima, como a de muitas meninas, não ia bem e eu tinha cada vez mais certeza de que eu era uma pessoa estranha, descolada do mundo.
Era cada vez mais cansativo reprimir os sentimentos ruins. Eu gastava toda a minha energia organizando tudo, já que nada podia sair do controle. Em um sistema educacional que, infelizmente, ainda é muito baseado no controle, eu me saía muito bem: era boa aluna, nunca tive problemas com notas ou de comportamento, e talvez isso tenha me ajudado a mascarar que algo definitivamente não ia bem.
Por algum tempo eu havia pensado em prestar vestibular para Letras, mas no último ano do Ensino Médio decidi que eu deveria por Direito. Além disso, surgiu para mim a ideia de que era necessário que eu passasse na faculdade naquele ano mesmo (eu não queria perder tempo) e tinha que ser na USP. Eram alertas vermelhos de que eu estava me distanciando de mim mesma na obsessão de controlar tudo, porém, eu ignorei todos eles. Durante esse período eu comecei a passar mal diversas vezes, tinha os sintomas de queda de pressão frequentemente, achava que iria desmaiar na rua.
Comecei a sentir um cansaço constante até que cheguei a dois estados: ou estava passando mal, ou dormindo… não conseguia fazer nada além disso. Foi aí que minha mãe interveio e marcou uma psicóloga para mim.
Esse foi o começo de uma vida melhor, mas foi um começo bastante difícil. Fazer terapia não é fácil, você se vê obrigada a sentar e encarar seus demônios, aqueles dos quais você fugiu com todas as forças durante boa parte da sua vida; mas é necessário. Muitas vezes você quer correr dali, voltar a reprimir tudo já que parece mais fácil, mas aí você se lembra que a conta que você paga por fazer isso acaba sendo alta demais, então você volta, contrariada, cansada. E, como cansa, as coisas mais difíceis que já fiz até hoje foram me sentar nos consultórios de psicologia e lutar comigo mesma, admitir que uma parte de mim se auto-sabotava , que eu precisava construir um jeito de lidar com o mundo totalmente diferente do que eu conhecia até então. Isso era totalmente aterrorizante.
Sozinha a gente não consegue. Por sorte, eu tenho uma família que me apoiou nessa luta, conheci profissionais maravilhosas que me mostraram que era possível viver melhor.
Quando eu comecei a melhorar da ansiedade eu também fui parando de falar nela. Fui reconstruindo a minha vida e repetindo para mim mesma que, se não havia nada de diferente em mim, eu não precisava falar disso para os outros. Eu não queria que a ansiedade fosse o meu cartão de visitas e isso é bom, porque eu sou muito mais do que ela, mas isso também esconde uma vontade de se encaixar que apaga as nossas diferenças.
Na faculdade percebi que haviam muitas outras pessoas lutando como eu, comecei a prestar atenção nisso e percebi que tinha amigas, parentes, conhecidos passando pelo o que eu passei sem saber que estávamos no mesmo barco. Foi aí que decidi que precisava falar sobre isso, e não só no consultório, eu precisava dizer para aquelas pessoas que sabia o que era lutar contra si mesma; decidi fazer vídeos contando sobre isso.
Quando fui nomear o canal, me sugeriram ‘Caos organizado‘. Soava um pouco clichê, mas definia muito a tarefa que eu queria fazer. Eu tinha dentro de mim um emaranhado de vivências e alguns aprendizados, era preciso organizá-los, assim como na terapia, colocar cada coisa em seu lugar e ver o que ainda servia.
Como as roupas guardadas há muito tempo no armário, dá trabalho organizar, e se a sua mãe ou outra pessoa não te ensinasse como fazer seria ainda mais difícil fazer tudo sozinha. É por isso que eu falo, escrevo, ponho para fora. Porque precisamos saber que às vezes a nossa mente nos trai, mas que nem por isso somos loucas e histéricas; porque precisamos saber que é importante cuidar de nós mesmas.”
O Divã de hoje é de Giovana Andrade.
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