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27 de abril de 2017

‘Me dói saber que por vários meses vivi uma relação que envolvia enganar outra mulher’

'Além da aliança dourada no dedo esquerdo, ele tinha um ego enorme, uma mitomania patológica'

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Quem senta no Divã de hoje é a Nina.

“Aprimeira coisa que eu reparo num homem não é o dedo anular esquerdo, é a angulação das clavículas. Ângulo aberto e ombro alto é sinal de ansiedade e insegurança, clavícula muito horizontal e peito estufado é arrogância na certa. Gosto é do meio termo. Reparo no que chega primeiro: o corpo, o cheiro, a voz ou o olhar. Noto as mãos como um todo, o tamanho, o tônus, as unhas. Na bolha de esquerda em que vivo ninguém casa com papel passado, sobrenome nem aliança. De modo que, quando vi seus anéis distribuídos entre vários dedos, não fiz uma leitura matrimonial. Gostei da sua presença, da sua altura, gostei dos cachos largos, da barba farta e em instantes concluí que ele era meu número. Olhei bem assim pra ele e meus olhos disseram: embrulha que eu vou levar. Ele ouviu direitinho.

Jogamos o jogo da sedução e, em algum momento do almoço, ele contou sem cerimônia que era casado, como se dissesse ‘passa o sal?’

Eu olhei praquelas clavículas tão bem desenhadas e lamentei a impossibilidade de analisá-las mais de perto. Mesmo assim, à noite ele me chamou pra jantar, depois pra um barzinho e, com a lua alta no céu e a caipirinha pela metade na minha mão, perguntei ‘então você é casado mesmo, casado-casado, relacionamento fechado, careta?’ [suspiro] ‘Que pena’… O copo de cachaça de gengibre já vazio, ele respondeu ‘sou e te quero mesmo assim’.

Fiquei feliz, mas desconcertada. E a gente seguiu na coreografia do flerte. Passei a sonhar toda noite com sua voz, seu abraço, seus regionalismos linguísticos, seus gestos e manias.

Finalmente admiti que estava perdidamente apaixonada, que estava tendo um caso com um cara casado e que precisava sair dessa roubada. Mas a paixão era labiríntica e fulminante. Pior: crescente.

Nos primeiros meses me sentia inundada, extasiada. Me debati e me afoguei nos meses seguintes, até que o calor do verão secou um pouco do amor e consegui me recuperar e boiar com alguma estabilidade. As clavículas já não me satisfaziam, as mentiras tornaram-se frequentes e passei a achar a voz dele anasalada demais. A culpa pela esposa traída já não cabia em nenhum dos lugares onde eu tentava escondê-la de mim mesma.

De repente o mar recuou e senti que já dava pé. O desgaste seguiu aumentando e a euforia da paixão diminuindo. Depois a água já pelos joelhos e agora a dois dedos do chão, os pés inteiros sobre a areia dura. Olho pra dentro, olho pra trás, e tento entender o que aconteceu… Sinto que preciso de uma explicação racional e lógica pra conseguir me perdoar.

Começo a relembrar os detalhes do amor, anoto datas, pistas, indícios, evidências — como foi mesmo que eu me enredei desse jeito, me deixei cair nesse redemoinho?

Aos poucos entendi que a fonte daquele afeto avassalador não era nada que havia nele ou entre a gente. O principal era o efeito que estar com ele produzia em mim, me causava um auto-apaixonamento intenso. Ao seu lado eu me sentia um mulher melhor, mais engraçada, mais perspicaz, mais criativa, conseguia me dedicar mais ao trabalho…

Além da aliança dourada no dedo anular esquerdo, ele tinha um ego enorme, uma mitomania patológica e uma febre crônica. Ele era meu número mas o tecido (emocional) pinicava. Era embrulhável mas não levável.

Quanto mais consigo ver os defeitos dele e as minhas virtudes, mais consigo me distanciar dessa roubada. Meu processo de desapaixonamento ainda está incompleto, mas caminha a passos largos. Agora já vejo a criatividade e o amor próprio que ele provocava em mim com um distanciamento, sem me sentir tão dependente deles — e, por tabela, dele.

Ainda me dói saber que, apesar de todo o meu esforço de exercer a sororidade no dia a dia, por vários meses me permiti viver uma relação que envolvia enganar outra mulher.

Ainda sofro por saber que ele provavelmente vai continuar traindo a esposa com outras pessoas, mas pra sair dessa história também preciso aceitar que o que tá feito, tá feito — já não dá pra desfazer.

Levo disso tudo a confirmação de que gostar de si é extremamente necessário e prazeroso. Levo o desejo de encontrar esse prazer em mim mesma, sem depender da presença e do olhar de um companheiro, muito menos de alguém indisponível e covarde. Quero poder admirar e valorizar cada vez mais as minhas próprias saboneteiras, meu peito aberto e corajoso, minhas mãos fortes, meus dedos longos e livres de anéis.

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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