Por Mariana Brecht*
A mesa que contava com a presença da estadunidense a Kristen Roupenian e da canadense Sheila Heti na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2019 levou o nome de “Bom Conselho”. A letra do Chico Buarque tilintava em minha cabeça: “Brinque com meu fogo / Venha se queimar”.
Não era esse o tal bom conselho, mas o nome de uma cidade do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, obra homenageada no evento. O encontro das autoras questionou a maneira como as mulheres têm sido representadas na escrita e se alastrou feito fogo. Chamas bem-vindas naquelas noites especialmente frias da cidade de Paraty.
Foi uma das muitas mesas compostas por mulheres neste ano na Flip. A maior presença de autoras permite que abordemos temas que até então foram omitidos ou deixados de lado. Temas femininos? Talvez. Ou pelo menos assim classificados por uma epistemologia patriarcal.
Sheila Heti e a maternidade
“Se os homens pudessem gerar filhos, a maternidade teria sido o tema central da humanidade há muito tempo”, disse Sheila Heti, durante a mesa “Bom Conselho” na Flip 2019.
Como sobrevivemos por tantos anos sem que um dos temas centrais nas vidas das mulheres fosse explorado pela filosofia? A autora discute como as questões filosóficas relacionadas à maternidade foram deixadas de lado, dificultando a construção do conhecimento sobre o tema.
Simone de Beauvoir afirmava que o empoderamento feminino passa pela troca entre as mulheres. Sheila Heti propõe em seu livro Maternidade que a questão seja abordada de maneira ampla e sólida, para chegar a “respostas em que se pode confiar”. O viés eleito é o da escolha: ser ou não ser mãe. Esquivando-se dos juízos de valor, a autora canadense inventa métodos para chegar à resposta para seu dilema, compartilhado por muitas mulheres.
“O livro funciona como uma canoa que me leva a tomar uma decisão”, afirma. Segundo ela, somos a primeira geração de mulheres que pode optar por não ser mãe sem um estigma monstruoso – e essa condição nos leva a refletir sobre tal escolha.
Além disso, Sheila Heti discute como a maternidade de uma mulher dialoga com a relação com sua própria mãe. Assim, com seu livro-canoa, navega por braços de mares revoltos e cavernas escuras, investigando terrenos inóspitos. Ao explorar tais caminhos desconhecidos, a escritora nos propõe mapas de autoconhecimento da mente feminina.
“Minha mãe chorou por quarenta dias e quarenta noites. Desde que a conheço, a conheço como alguém que chora. Eu pensava que, quando crescesse, eu seria um tipo de mulher diferente, que não iria chorar, e que resolveria esse problema do choro dela. Ela nunca pôde me contar qual era o problema, apenas dizia eu estou cansada. Será possível que ela estivesse sempre cansada? Eu me perguntava, quando era criança, será que ela não sabe que é infeliz? Eu achava que a pior coisa do mundo era ser infeliz sem saber. Conforme fui crescendo, passei a procurar obsessivamente por sinais de infelicidade em mim mesma. Então eu também me tornei infeliz. E cresci cheia de lágrimas.” Trecho de Maternidade, de Sheila Heti, 2019, Companhia das Letras.
Kristen Roupenian e o poder
Kristen Roupenian diz que não prestava uma atenção especial a seus personagens femininos. “Todos buscamos poder. E as mulheres são ensinadas desde cedo que seu poder é condenável”, afirmou durante sua fala na Flip.
Ela ilustra seu propósito com um trecho de seu livro Cat Person e outros contos, do conto “Aquela que morde”, sobre uma mulher que divaga sobre adquirir uma posição de poder em relação ao seu colega de trabalho por conta de um velho e mal criado hábito – o de morder obstinada e dolorosamente algumas pessoas a sua volta. A relação entre eles se tornaria uma valsa mal coreografada, um braço de ferro do qual ele está certo que sairia perdedor:
“Motivos para não morder Corey Allen
- É errado.
- É errado.
- É errado.
- É errado. “
Kristen Roupenian nos permite chegar a um lugar até pouco marginalizado no discurso feminino – a bizarrice, elevada a sua mais alta potência, o poder de fazer aquilo que ninguém espera. Quais são os hábitos considerados hoje estranhos ou errados? Quais vontades mantemos omissas por mera convenção social?
Os contos da autora nos mostram que o patriarcado nos atinge em camadas mais profundas do que imaginamos – refletido, por exemplo, no sentimento de obrigação de transar com um homem que não nos agrada, como no conto “Cat Person”, pelo qual a autora ficou mundialmente conhecida.
“Todos querem poder. Mas as mulheres são punidas pelo poder que detêm. Ou acabam precisando de uma redenção (…) Nós estamos sempre o demonizando ou nos desculpando por ele”, Kristen Roupenian na Flip.
Epifania de leitora
A escrita das duas autoras tem o efeito de uma epifania, digna da G.H. de Clarice Lispector, aquela das coisas que nem imaginamos não compreender. Às mulheres foram, por muito tempo, negadas as literaturas e as artes em geral. Rebaixadas à condição de musas, nos era tomado o papel central nas representações.
Hoje, as mulheres estão cada vez mais presentes como autoras e tal pluralidade permite que nossa voz seja ampla e que fale ao mesmo tempo com sabedoria e precisão de temas essenciais que foram por tanto tempo colocados em segundo plano.
A compreensão profunda da essência das coisas que nos são caras é o que nos proporciona a literatura de Sheila Heti e Kristen Roupenian. A representatividade, a pluralidade dos relatos femininos é um ingrediente fundamental e a epifania é uma receita mágica, fruto do compartilhamento de nossas obras, de nossas próprias conclusões, cozidas a fogo lento de fogueiras que nós próprias alimentamos.
*Mariana Brecht é apaixonada pela escrita e vive buscando formas de definir e reinventar sua voz. Com um pé em cada lado do Atlântico, é aficionada por literaturas de territórios ditos periféricos e novas narrativas. Trabalha como roteirista e designer de narrativas imersivas. Nasceu em São Roque-SP, com raízes cravadas em solo de terra roxa e idéias regadas por todas as chuvas do mundo, segue vivendo e escrevendo, vivendo e escrevendo, até que os dois verbos se conjuguem em um só tempo.