Escrevi um livro no tempo da epidemia. “Zika: do Sertão nordestino à ameaça global” é uma biografia do tempo presente – uma história que insistimos em ignorar, uma tragédia que não é descrita com os títulos de um escândalo contra a vida das mulheres e de seus filhos.
A melhor versão da descoberta conta que o vírus zika chegou ao Brasil com a Copa do Mundo de 2014: uma surpresa irônica para quem esperava ganhar no futebol. Mas pior que a goleada do 7 a 1 da Alemanha no futebol foi a multidão à procura de hospitais e farmácias por uma doença que se acreditava ser alergia. A pele coçava, as juntas doíam, o mal-estar era intenso.
Para o sertanejo nordestino que já conhecia a febre da dengue, aquilo era uma nova doença e, na falta de nome oficial, chamou-a de “alergia medonha” ou de “doença misteriosa”. Demorou para a ciência dar o nome certo: foram meses de pesquisas, coletas de sangue, imagens do corpo adoecido circulando de norte a sul do país. Médicos clínicos ouviam os lamentos do sertanejo doente, coletavam sangue, mas o especialista do laboratório não encontrava o nome certo do vírus. Dengue não era. Tampouco chikungunya e menos ainda a ordinária “virose”.
Foi em Salvador que se anunciou a descoberta do vírus zika circulando neste lado do mundo: o vírus era velho conhecido de Uganda, onde foi identificado nos anos 1950, e dois surtos recentes haviam assustado o sul da Ásia, na ilha Yap e na Polinésia Francesa. De tão desimportante para a ciência, o vírus zika ocupava poucas linhas nos manuais de virologia.
A chegada do vírus zika foi anunciada com pouco alarde pela imprensa brasileira. Era só mais um dentre o horizonte diversificado de arbovírus no Brasil. Foi no segundo semestre de 2015 que o zika ganhou manchete mundial: médicas em Recife e em Campina Grande anunciavam o nascimento de crianças com microcefalia.
O número espantava – eram dezenas em único hospital, centenas em cada estado. Nada estranho aparecia na história da gravidez daquelas mulheres, exceto a coceira, as dores nas juntas, a virose diferente no verão.
O vírus zika não aparecia em nenhum lugar da ciência como causador da microcefalia ou de outras alterações neurológicas no feto: não havia relato de “transmissão vertical” do vírus da mulher grávida para o feto. Era um anúncio extraordinário. Em um ano de epidemia, já foram quase 10.000 crianças notificadas como em risco à síndrome congênita do zika.
O nordeste brasileiro foi o epicentro das notícias mundiais: médicas de beira do leito foram alçadas à atenção global, cientistas estrangeiros fizeram pouso em cidades escondidas do Sertão. Em fevereiro de 2016, dra. Margareth Chan, presidente da Organização Mundial de Saúde, anunciou o quarto alerta de situação de emergência global em saúde – a epidemia do zika e o risco ao desenvolvimento dos fetos era uma importante questão de saúde pública.
Ao mesmo tempo, o Brasil iniciava uma de suas mais graves crises políticas da história: múltiplos Ministros da saúde, dois presidentes, corrupção com prisões de gente graúda no atacado. Comemorou-se as Olimpíadas e a beleza do Rio de Janeiro, repelentes foram desperdiçados para os estrangeiros que ironizavam não ter conhecido a zika.
Enquanto isso, a segunda geração de mulheres iniciava a peregrinação solitária pelo pré-natal da angústia. Se em fevereiro deste ano eram 40 mulheres em único ambulatório em Campina Grande, na Paraíba, já são mais de 120 neste momento. Todas com seus filhos de cabecinha miúda, cuidando de uma síndrome que a ciência ainda desconhece todos os sinais: é na vida cotidiana que se dão conta que a irritação do filho pode ser convulsão, que a dificuldade em comer pode ser algo permanente à vida da criança.
A primeira geração de crianças com a síndrome do zika congênito completa um ano de idade, e pouco foi feito pelo governo brasileiro para colocá-las no centro da conversa política sobre a epidemia.
O zika não pediu descanso para que o país enfrentasse outros temas, e as mulheres foram esquecidas como vítimas da tragédia humanitária em curso. Como o vírus não conhece fronteiras – viaja pelo mosquito ou pela transmissão sexual – o sofrimento da sertaneja nordestina pode ser a da mulher comum de qualquer parte do mundo.
Há uma emergência de saúde pública em curso, mas principalmente uma emergência de direitos humanos.
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