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Céu Ramos -Jornalista
26 de março de 2024

Intersexo na certidão de nascimento e novo nome registrado: Céu

Pernambucana conta como conseguiu ser a primeira no Brasil a fazer a alteração no documento, após longo processo judicial; Ela passou por diversas cirurgias invasivas desde bebê, e luta contra o binarismo de gênero

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intersexo
Arte: Giulia Santos

Meu nome é Céu Albuquerque, tenho 32 anos e moro em Olinda, Pernambuco. Sou jornalista, engenheira civil e fotógrafa. Sou uma mulher cis, lésbica e intersexo. Hoje, posso me descrever assim, mas até chegar aqui foi uma longa jornada de dores e aprendizados. 

Em julho de 2021, iniciei um processo pela Defensoria Pública do Estado de Pernambuco para retificar o campo de nome e sexo em minha certidão de nascimento. Solicitei a mudança para o nome Céu, que tenho usado desde os 19 anos, e a alteração do campo de sexo para “intersexo”. 

A ação visa reconhecer a existência de pessoas biologicamente intersexo no sistema brasileiro, permitindo que outras pessoas também busquem reconhecimento por meio de mudanças em suas certidões. 

Após quase três anos de espera e várias etapas, em fevereiro de 2024, o veredito favorável da juíza foi emitido.  Fui a primeira pessoa intersexo do Brasil a conseguir esse feito. Agora estou no processo de atualização de todos os documentos necessários, o que demanda tempo.

Leia mais: A diferença entre sexo, gênero e orientação sexual

Redesignação sexual com 1 ano de idade

Meu estado intersexo é a hiperplasia adrenal congênita (HAC), uma condição genética que afeta as glândulas suprarrenais, responsáveis pela produção de hormônios importantes para o funcionamento do organismo, como o cortisol e os hormônios sexuais.

Nasci com genitais ambíguos devido à exposição a hormônios andrógenos ainda na fase intrauterina. Quando tinha cerca de 1 ano de idade, passei por uma cirurgia de redesignação sexual, na qual ocorreu uma mutilação genital. Como eu nasci com um aumento do clitóris, foi realizada a clitoroplastia e amputação de todo o tecido esponjoso e glande do órgão, sobrando apenas o feixe do nervo principal, onde o mesmo foi embutido. 

Ao longo do tempo, essa cirurgia resultou em diversos problemas físicos, como fibrose, estenose e perda de sensibilidade. Também enfrentei desafios psicológicos, como ansiedade, depressão e crises de pânico, me afetando desde a infância. 

Depois, realizei 7 cirurgias adicionais na tentativa de reverter a mutilação e melhorar minha qualidade de vida, mas não tive sucesso. A última cirurgia, realizada no ano passado em São Paulo, trouxe, pelo menos, melhorias estéticas e qualidade de vida.

Urgência social em determinar o gênero

Desde a década de 60 até os dias atuais, a Medicina tem sido profundamente binarista quando se trata de corpos intersexo. Em vez de focarem na qualidade de vida dos pacientes intersexo, tratando apenas suas comorbidades, a prioridade é à intervenção cirúrgica, como uma urgência na determinação do gênero para crianças intersexo. 

Todo esse enfoque tem violado os direitos básicos sobre os corpos de crianças, colocando suas vidas em risco com cirurgias que podem resultar em sequelas, incluindo infecções urinárias recorrentes e dor intensa. 

Estudos demonstram que realizar cirurgias tardiamente, dando à pessoa intersexo, já adolescente, o direito de decidir sobre a intervenção, reduz os riscos de complicações pós-cirúrgicas. Essa abordagem respeita a autonomia sobre os próprios corpos.

A única justificativa médica para a intervenção cirúrgica precoce é evitar a discriminação social devido à genitália que não se enquadra em padrões binários. No entanto, muitos estudiosos e ativistas intersexo argumentam que o corpo de uma criança não deve ser moldado para atender às expectativas de uma sociedade. 

É a sociedade que deve mudar suas perspectivas e aceitar a diversidade de corpos, sem a necessidade de intervenções invasivas e não consensuais. É fundamental reconhecer e respeitar a dignidade das pessoas intersexo desde o nascimento, esperando que, com idade apropriada, possam tomar suas próprias decisões.

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Além de cirurgias, perguntas invasivas 

Minha jornada desde a adolescência até a vida adulta tem sido desafiadora, especialmente no que diz respeito à minha qualidade de vida sexual, que foi significativamente afetada por cirurgias e pelo intenso preconceito intersexofóbico dentro da comunidade lésbica. 

Muitas mulheres lésbicas, ao descobrirem através das minhas redes sociais que sou uma pessoa intersexo, optavam por não mais manter contato comigo. Em alguns casos, eram excessivamente invasivas, fazendo perguntas intrusivas sobre meu cromossomo, minha anatomia genital. 

Já perguntaram até mesmo se eu tinha características físicas específicas associadas a um gênero. Fui questionada se eu tinha um pênis ou uma vagina como se isso definisse minha identidade.

Ao longo do tempo, as parceiras com as quais me envolvi e as amizades que cultivei foram com mulheres que não demonstraram comportamentos machistas e binaristas. Foram mulheres incríveis, que não se importaram com minha condição intersexo. As experiências positivas me fizeram perceber que nossa sociedade ainda precisa se libertar do binarismo de gênero, que valoriza mais características físicas do que a própria essência do indivíduo.

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Intersexualizando, ativismo e apoio

Aos 20 anos, me tornei ativista intersexo, focando inicialmente na conscientização sobre a hiperplasia adrenal congênita. Somente há cerca de 5 ou 6 anos, tomei consciência do termo “intersexo” como um guarda-chuva que engloba várias variações e condições, ampliando assim meu ativismo. 

Desde então, tenho me destacado como uma das principais vozes brasileiras nesse tema, participando de reportagens, podcasts, palestras em universidades e entrevistas para grandes jornais brasileiros e para a Organização das Nações Unidas (ONU). 

Acredito que furei bolhas, pois milhares de pessoas tiveram acesso pela primeira vez ao termo “intersexo” quando várias matérias jornalísticas foram divulgadas nas redes sociais.

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Muito mais que XX e XY

Há mais de uma década, venho ajudando muitas pessoas a descobrirem sua corporalidade intersexo, conscientizando famílias sobre a não necessidade de cirurgias genitais mutiladoras. 

Ofereço apoio especialmente as pessoas intersexo adultas que estão em processo de diagnóstico. Atualmente, meu ativismo é focado em minha página do Instagram Intersexualizando, onde abordo condições intersexo, qualidade de vida, advocacia, entre outros assuntos importantes.

Desejo que, cada vez mais, as pessoas saiam de suas zonas de conhecimento binário e entendam que além do XX e XY, existem centenas de possibilidades de corporalidades biológicas. Espero que políticas públicas direcionadas à certidão de nascimento, saúde, direitos e qualidade de vida das pessoas intersexo possam ganhar destaque a partir da minha história.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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