“Parecia que não fazia muito sentido”. É assim que o militante de movimentos sociais, Bento Xavier, 25 anos, que se identifica como transmasculino, relata o conflito que viveu ao entender sua identidade masculina. Se por um lado havia uma identificação com o gênero dos colegas de classe na escola, por outro, rolava uma repulsa em relação aos seus comportamentos. No Ensino Médio, ele notava que todos pareciam seguir a mesma cartilha. Intolerância, preconceito e, principalmente, assédio. “Foi quando eu comecei a andar só com meninas”.
Algum tempo depois, em 2019, Bento começou a transição de gênero. Ao mesmo tempo que o processo parecia deixá-lo mais à vontade na própria pele, ele também parecia viver assombrado por aquelas memórias da adolescência. Elas surgiam como uma ameaça: será que se entender como homem era a mesma coisa que parecer com aqueles caras? Se fosse, ele não queria.
Aliada a esse desconforto, outra coisa começou a acontecer. As pessoas passaram a tratar Bento de um jeito diferente. Pareciam respeitar ele mais sem que precisasse fazer nada de diferente, e isso, segundo ele, era muito desconfortável. “Você chega nos lugares e é lido como homem. Isso muda, né?”
Nesse período, Bento fazia terapia e, durante uma das sessões, conseguiu desabafar sobre o que estava sentindo. O psicólogo dele, um homem gay, o ajudou a entender que ser homem não significava abraçar a masculinidade padrão. Portanto, transicionar para uma identidade masculina não era, necessariamente, reproduzir aquele conjunto de ideias tóxicas do que se entende por homem. “E que não permite nada de feminino, né?”, relembra.
MASCULINIDADES POSSÍVEIS
Por conta de todos os significados que essa palavra carrega, Bento prefere se apresentar como transmasculino. Para ele, a identificação com um termo com menos significados atribuídos permite a construção mais livre da própria identidade. “Não quero atender a expectativa feminina, mas também não é essa coisa da masculinidade do jeito que ela é. Consigo pegar um pouco de cada coisa”, explica.
Para ele, além de uma experiência pessoal, a transmasculinidade oferece novas referências sobre o que é performar uma identidade masculina, sem precisar passar pela reprodução do machismo e do sexismo. “Gênero não é só um sistema de opressão, mas também é. A gente precisa pensar como fazer isso sem ser oprimindo alguém”.
Essa mudança não vem embutida na transição de gênero. É preciso se abrir, entender como a sociedade se organiza e se aprofundar no próprio processo. É nesse ponto do caminho que alguns homens trans são acusados de reforçar a masculinidade hegemônica, agindo como manda a norma. “Já conheci caras trans que reproduziam a mesma masculinidade”, e acrescenta “não faz sentido, porque você sabe o que é ser no mundo sem ser masculino”, questiona o ativista.
HOMENS TRANS REFORÇAM A MASCULINIDADE DOMINANTE?
O iluminador de teatro, Felipe Fly, 27 anos, se identifica como homem trans, e diz que já ouviu essa conversa em alguns grupos. Entretanto, na opinião dele, negar os exemplos que reiteram como os homens devem agir de forma misógina é questão de compromisso e responsabilidade. “Buscar construir uma relação menos tóxica do que os exemplos que a gente tem”. Apesar disso, ele contesta a ideia de que homens trans podem reforçar a masculinidade dominante, por serem “uma parcela muito pequena da população”. “O esteriótipo criado é cisgênero, não tem como a gente reforçar”.
Na opinião dele, a expectativa de que homens trans e transmasculinos se pareçam com homens cis para terem suas identidades validadas é uma demanda da cisgeneridade. “É como se a sociedade dissesse que a única forma de ocupar esse lugar é obedecendo à cartilha do estereótipo de gênero”, rebate. Isso se traduz na cobrança por uma imagem que homens trans e transmasculinos deveriam buscar – como maxilar largo, barba, peitoral definido -, mas também pelo jeito de se colocar no mundo, aderindo ao comportamento tóxico padrão.
Para Felipe, a transmasculinidade nasce para questionar a norma. “Masculinidade e feminilidade só servem para descrever o que já existe hoje. A transgeneridade coloca no debate que existem múltiplas formas e potencialidades de existir em sociedade”, finaliza.
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