Depois de anos fora do Carnaval do Rio de Janeiro, eu resolvi voltar em 2016. Nunca fui muito fã, diga-se de passagem, mas desde que parei de viajar e resolvi ficar na cidade, esse seria o primeiro ano em que uma tragédia não me deixaria triste demais para curtir a folia – em 2014 meu irmão foi assassinado e em 2015 um amigo foi baleado e ficou paraplégico, ambos em 12 de fevereiro, poucos dias antes do Carnaval.
Decidi que naquele ano voltaria em grande estilo, nada de shortinho jeans e camiseta adornada por um colar havaiano e algumas purpurinas, eu queria fantasia completa, uma para cada dia!
Nos preparativos e idas ao Saara (comércio popular do Rio de Janeiro) cheguei à conclusão de que me fantasiaria de “branca”. Sim, eu usaria somente fantasias tipicamente brancas nos quatro dias de folia: egípcia, Iemanjá, Gueixa e paquita- bambolê (um apelido “carinhoso” às meninas da Praça São Salvador, no bairro das Laranjeiras, também do Rio, reduto do que chamamos de burguesia folclórica.)
Foram ótimos dias de festa, mas eu quase sempre precisava explicar a fantasia. E, se quem me conhece sabia que era quase um ato político, existia um olhar dos estranhos como quem diz “essa fantasia não combina com você”.
Eu deveria me fantasiar de quê? Mulata? Nega maluca?
Sim, todo ano voltamos a essas fantasias que dizem ser homenagens às mulheres negras. A Nega Maluca, além do bolo de chocolate com cobertura, é o maior exemplo de black face no Brasil: pessoa branca (geralmente homens) com o rosto e corpo pintado de preto, exceto a boca e o entorno dos olhos, peruca black power, vestido bem colorido.
Foi exatamente em contraponto a essa “homenagem”, que Thayná Trindade, Mayara Ximenes e outras mulheres pretas pensaram no bloco “Brancas Desequilibradas”.
“A ideia do bloco, aliás, do movimento, é estabelecer uma postura de inverter algo de que fato nos agride. Colocam todos os nossos atributos como fantasia de carnaval e, mesmo numa época em que a gente problematiza todo esse tipo de questão, parece que essa postura está meio que enraizada, já associam as nossas formas, as nossas curvas e os nossos cabelos à sacanagem e à brincadeira. Parece que tudo o que é do preto, da mulher preta, é muito palpável, muito lúdico. E isso nos agride”, conta Thayná.
A mulata é um dos personagens mais desejados do Carnaval carioca. No dicionário ela é definida simplesmente pela mestiçagem, filha de mãe branca com pai negro, ou vice versa. Extra-oficialmente ela é bem mais que isso. Ela é a mulher negra com “traços finos”, cabelo cacheado, mas mantendo a bunda grande. Antes disso, ela era mucama, bonita o suficiente para estar dentro de casa, a negra dos serviços domésticos e da satisfação do senhor, do estupro.
A mulata já existia no Carnaval, afinal, é carnaval é preto, mas foi Osvaldo Sargetelli quem soube ganhar dinheiro com esse personagem que era exibido em suas casas de show e em festas particulares. Depois, Valéria Valença foi coroada durante 14 anos na TV brasileira como rainha das mulatas.
Thayná continua:
“Então a gente resolveu pagar na mesma moeda, ou simplesmente tentar, porque se a gente é maluca, o branco também tem vários distúrbios, e trazer a tona todas essas pessoas caricatas”.
Mas o que era para ser uma brincadeira entre amigas tomou uma proporção gigantesca e de um evento no Facebook, os confirmados tiveram que migrar para um grupo, onde só são permitidas pessoas negras.
“Quando foi criado percebemos a necessidade que as pessoas estavam de falar e de falar das nossas demandas”, completa Mayara.
E tudo começou com os membros escolhendo suas fantasias, geralmente ligadas a críticas de apropriação cultural, como “a branca trançada”, “a branca passista”, “o branco aprendendo a ser do gueto”.
Depois, vieram as ideias baseadas nas tretas internas como a “palmitagem” (o homem ou mulher negra que prefere outro homem ou mulher branco para se relacionar afetivamente), “o produtor de festa com nome black mas que só tem branco como convidado”, “o grupo cultural de Maracatu em que a maioria dos participantes é branco”.
Obviamente, denúncias de páginas racistas, bares racistas, posts racistas também estão por ali. E o grupo é até espaço pra notícias felizes, como a entrada na universidade de uma garota negra ou a gravidez da Beyoncé.
Hoje o grupo já tem quase três mil membros e a ideia é que ele permaneça mesmo após a saída do bloco, que aliás tem concentração marcada para o dia 27 de fevereiro, às 9h da manhã em frente ao Cine Odeon, na Cinelândia.
Carnaval sem homofobia e transfobia
A pessoa LGBT, junto com as mulheres negras, também está sendo muito falada no universo do carnaval na última semana. Tudo porque alguns blocos – que estão sendo chamado de politicamente corretos como ironia – resolveram deixar de cantar músicas como “Cabeleira do Zezé”.
Quitta Pinheiro, amiga trans, fez um post que me deixou intrigada, dizia:
“Amigues trans, como é o carnaval pra vocês além de ter que aturar macho vestido de estereótipos femininos depois de ter passado o resto dos dias te julgando pela mesma coisa?”
Me lembrei dos blocos tradicionais dos bairros, mesmo os pequenos, que todo ano juntam os homens vestidos com as roupas de suas esposas, mães, namoradas, irmãs, como o “Bloco das Piranhas”. Me lembrei também de uma cena do documentário “Favela Gay”, dirigido lindamente pelo amigo Rodrigo Felha, em que uma mulher trans descreve que conseguiu se assumir depois de um carnaval, em que se vestiu com roupas femininas e nunca mais conseguiu tirar.
“Eu fiz o post porque esse será meu primeiro carnaval depois de ter me entendido e me colocado como uma pessoa trans, então minha pergunta era mesmo pras trans que conheço. Era uma percepção de outros carnavais, de ver homens de saia e peruca e estar tudo ok, enquanto depois de eu ter me afirmado como uma pessoa trans eu só ouço piadas, lgbtfobia, transfobia o tempo inteiro pelo fato de eu estar usando as mesmas roupas que eles usam no carnaval”, me contou Quitta.
E continua, “é complicado pra própria mulher, porque quando um homem se veste de mulher pra brincar o carnaval ele usa roupas curtas, vulgarizando corpo da mulher não só das mulheres trans, mas das mulheres cis.”
É claro que é preciso entender o contexto histórico de cada coisa, mas contexto histórico não pode se tornar pretexto para racismo, machismo, lgbtfobia, intolerância.
Não por acaso Sargetelli era sobrinho de Lamartine Babo, o mesmo que escreveu a marchinha “O teu cabelo não nega”, dos versos:
“O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
MAS COMO A COR NÃO PEGA, mulata
Mulata, eu quero o teu amor”
E não é porque marchinhas como essa são “patrimônio cultural” que somos obrigadas a ouvir, a cantar e a aceitar. Não é porque é “normal”, que deixa de ser racismo, que deixa de ser agressivo, que deixa de ser ofensivo.
A pior coisa que pode ser feita é tentar minimizar a importância de se debater esses e outros temas em qualquer época do ano, no Carnaval não seria diferente e isso é responsabilidade de todos, os que se sentem ofendidos e os que não se sentem.
Outro ponto importante é a escuta, a conversa, as perguntas que podem ser feitas antes de passar vergonha nos blocos e nos outros dias do ano. Eu, por exemplo, achava que me fantasia de índia americana são teria nada demais, até que alguém alertou que “um povo não é fantasia”.
Ou como finalizou de forma muito plena Quitta:
“Isso é uma forma de transfobia, de racismo, é uma forma deslegitimar o que uma pessoa é. Dizendo que aquilo que ela é não é natural, não é normal, é só uma fantasia e como é uma fantasia, qualquer pessoa pode usar”.
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