“Foi em noite de lua alaranjada, daquelas que iluminam e influenciam todos que estão sob ela, que o desespero ganhou o meu corpo (literalmente). Desconfio que foi em um local mórbido que te concebi, talvez porque eu já estivesse habituada à morte. Sua, minha e da sua avó. Te concebi no muro de um cemitério, entre os beijos e abraços de alguém que não te quis. No dia seguinte à lua cheia, uma certeza: estava prenhe.
Ele suspirou aliviado. Chegou a pensar que eu havia contraído alguma doença grave. Com olhar cheio de compreensão, disse: “um filho é uma benção. Você já tem instintos e, desde que menstruou, já estava preparada para ser mãe”. A naturalidade com que meu pai encarou a notícia me assustou. A fala seguinte veio cheia de respeito: “você quer ter esse bebê? Eu vou te ajudar a criar, não vai faltar nada para ele, mas se você decidir que não, temos que juntar dinheiro para interromper a gravidez da forma mais segura”.
No Brasil, a interrupção da gravidez só é legal em casos de bebês anencefálicos, estupro ou risco à gestante. Mas a letra da lei não impede que mulheres façam abortos em outros casos. Abortos acontecem todos os dias — o problema é que a clandestinidade enche essa experiência de riscos. Não há garantia de segurança. Mas, quanto mais dinheiro você tem, mais chances tem de ter um aborto seguro, com higiene. Eu sofri na pele esse despreparo do Estado. Havia tentado abortar três vezes antes de contar para o meu pai. Fracassei em todas, pois o remédio era de farinha.
“Antes estava perdida, desamparada, mas aqui com vocês me sinto pronta para ser mãe”, respondi ao meu pai. Porém, passei a madrugada com panos amornados a ferro na barriga, chás e palavras de conforto de uma prima mais velha. Eu só queria que a dor saísse de mim e você se acalmasse, porque dessa vez eu queria que ficasse comigo, não tentaria te tirar mais. Mas, aos 16 anos, a gravidez era de risco: minha estrutura física não era uma casa segura para você.
“Você está parindo”, disse a médica. Mas como parir? Meu filho ainda não estava crescido e não era hora dele.
Não tive escolha, me colocaram um “sorinho”. As contrações aceleraram. Então levantei o lençol e toquei a sua mão. Pequena, frágil, rósea. Eu mal conseguia acreditar no que meus olhos viam. Você saiu! Seu corpinho estava um pouco formado, apenas com os contornos daquilo que seria você. Chorei. Não queria avisar a enfermeira, porque ela ia te tirar de mim. Tinha esperanças que você estivesse respirando — uma situação ilógica e surreal para um bebê de três meses. Mas um coração desesperado não sabe dessas coisas. Fiquei te olhando por uns segundos, com medo de te tocar, te machucar, como já havia tentado por diversas vezes.
Chamei a enfermeira. Talvez ela pudesse nos ajudar. A expressão dela me assustou. Vi em seus olhos que ela não queria me dar a notícia, apesar de óbvia. Eu era apenas uma adolescente. Acompanhei-a com olhar, ela voltou e disse: “quer saber qual era o sexo do seu bebê?” Foi ali que percebi que ele estava morto. Era um menino.
Minha vista escureceu de tantas lágrimas, numa mistura de luto e alívio. Mas, para além disso, eu carregava um fardo. Tinha tentado abortar três vezes e agora fora espontâneo.
O bebê saiu, mas a culpa não. O meu ex-namorado me deu apenas dinheiro e o incentivo ao aborto. O ônus fica sempre todo com a mulher. Li esses dias no jornal sobre os homens que abandonam as gestantes cujos bebês têm microcefalia e não pude deixar de lembrar de mim, da minha história. O abandono não acontece só nesses casos, mas a criminalização do aborto fica toda com a mulher.
Na época, eu não sabia que a prática do aborto era um crime, mas os funcionários dos hospitais por onde passei foram hostis, tentando fazer com que eu entendesse que havia cometido um erro. Primeiro, por não ter evitado a gravidez. Segundo, porque, se eu estava com descolamento de placenta aos três meses, certamente era porque tinha provocado aquilo.
Apesar de estar sagrando, com dores horríveis, não fui tratada como paciente, mas como criminosa.
Os olhares desconfiados, a quantidade de perguntas, a demora para me examinar e a quantidade de homens olhando a minha vagina como se eu fosse um objeto de estudo, tudo isso me fazia me sentir oprimida, mais oprimida que a situação demandava.
Hoje, com quase o dobro da idade, não recomendaria percorrer o caminho que eu percorri. Porém, tenho um profundo respeito por cada história. Não posso entender a complexidade de cada situação, de cada mulher e sua gravidez, então procuro não marcar outras mulheres com o julgamento que fui marcada e que demorou anos para cicatrizar.
Sim, levei anos para entender que não foi minha culpa o meu filho não ter nascido. Durante muito tempo, me afastei de tudo que remetia à maternidade, não queria me aprofundar em vínculos afetivos com crianças. Hoje estou despida das culpas e fiz as pazes com o desejo de ser mãe. Ultimamente sinto vontade de me fazer água, de ser água e enfim parir algo vivo. A vontade de carregar no colo um filho vivo se confunde com o filho que me habitou, mas não pôde ser amamentado. E como conviver com um desejo que me remete a essa morte-vida de um filho?
Dia desses, me perdi por entre as estantes da livraria. Depois de muito vaguear por entre as estantes, me vi na sessão infantil. Imaginei eu e você no chão da sala, encenando histórias de iaras e negrinhos do pastoreio. Decidi comprar um livro. Um presente para você, meu amor, e para mim. Um jeito de aquietar meu coração que quase não aguenta de ansiedade da sua chegada.”
Quem senta no Divã de hoje é Anelize Moreira.