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16 de agosto de 2018

Acertando as contas com o pai do meu pai

"Por muito tempo eu tive mágoa do meu avô por não ter sido um bom pai, mas com o tempo fui entendendo como ele, homem negro e pobre, também foi produto de uma sociedade racista e classista"

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Família Gama. Em pé, a esquerda, meu avô Antônio e, a direita, meu pai Eduardo. Crédito: Arquivo pessoal

Quem senta no Divã de hoje é Thais Folego.

Domingo de Dia dos Pais. Eu tinha decidido que este ano não teria a tradicional foto da família feliz nas redes sociais. Entre outros motivos, porque fiquei pensando como se sentiam os “sem pai” nesse dia, principalmente os que foram abandonados pelos seus.

Mas eis que na segunda-feira me deparo com dois posts de amigas. Uma falando sobre a conquista de ter se “aquilombado” com um homem negro que, apesar de não ter tido uma figura paterna, se tornou um ótimo pai para o seu filho. Ela, assim, sai da estatística de mulheres negras a quem costuma ser destinada a maternidade solo e a solidão amorosa.

A outra mana falava sobre seu pai, homem negro, nordestino e semianalfabeto que, contra todas as expectativas, sustentou a família e sempre foi um pai presente. Aí me bateu uma necessidade de contar a história do meu pai e de como ele faz parte desse grupo (ainda seleto) de homens.

Por ter tido um pai ausente, meu pai foi pai dos próprios irmãos, depois dos sobrinhos e até dos sobrinhos-netos. Aos 13 anos já trabalhava na feira e era o chefe da casa. Foi assim que meu pai se tornou pai muito antes de engravidar a minha mãe. Por muito tempo eu tive mágoa do meu avô Antônio por não ter sido um bom pai pra o meu pai e um bom esposo para a minha avó Lourdes.

Mas com o tempo fui entendendo como ele, homem negro e pobre, também foi produto de uma sociedade racista e classista, que não deu mole para o preto autodidata, que aprendeu a falar inglês (sei lá como) e japonês (com os imigrantes da feira). Meu avô era mecânico habilidoso e chegou até a trabalhar em uma montadora na Itália.

Na juventude, teve uma vida relativamente boa fora de casa enquanto minha avó doente (longo histórico de transtornos mentais na família) estava em casa se virando com os filhos. Meu avô sucumbiu ao alcoolismo e, já velho, teve um derrame. Passou os últimos anos da vida na cama, com o lado esquerdo do corpo paralisado. Faleceu há dois anos.

Ainda não tenho uma relação tranquila com a memória do meu avô, mas aos poucos vou compreendendo que essa raiva que sinto, na verdade, não é dele, mas sim do racismo estrutural que fez com que a parte da minha família pobre e preta não prosperasse como a parte da família pobre e branca (a família paterna é negra e a materna, branca). E não é só do quesito financeiro que estou falando.

O que muitas pessoas não entendem é o alcance do racismo dentro da história das famílias negras. Como ele produz doenças físicas, desequilíbrios emocionais, alcoolismo e abandono, que acabam em famílias desestruturadas. Alcance esse que é difícil e demoramos a compreender. Levamos gerações para catar os caquinhos e reconstruir um núcleo familiar.

Meu pai chegou a conhecer na infância sua bisavó, mulher que foi escravizada (sim, esse rolê não faz tanto tempo que acabou, como os livros fazem parecer). Não conhecemos nada da história dela, porque essa coisa de história de família não funciona muito bem em famílias negras. O que sei é que foram necessárias quatro gerações para que tivéssemos algo o mais próximo da família Doriana: filhos criados por pai e mãe presentes – que é como foi na minha casa.

A interseções entre as opressões parece não ter fim. Se por um lado homens negros podem oprimir suas mulheres por meio da questão de gênero, por outro sofrem opressão pela cor da pele. Meu avô é exemplo disso. Quando essas opressões todas se cruzam, adicionando aí a classe social, o mosaico familiar pode ser bem complicado (obrigada, feministas negras, por teorizarem e nos explicarem tudo isso).

Meu pai nunca militou no movimento negro ou feminista, mas me ensinou no dia a dia os valores de igualdade, equidade e empatia que sempre me guiaram. Me descobri negra aos 18 anos e feminista há pouco. Mas desde criança fui incentivada a gostar dos meus cabelos cacheados e do meu nariz de batata – aqueles traços que não via nas minhas bonecas e nem na TV. Sempre vi meu pai dividindo com a minha mãe as tarefas de casa e os cuidados comigo e com os meus irmãos. As minhas memórias mais felizes envolvem os dois.

Tenho uma amiga (que não tem referenciais masculinos muito bons) que diz que o meu pai é o melhor exemplo de pai que ela conhece. Fico, ao mesmo tempo, agradecida (por tê-lo na minha vida) e triste (por ele ainda ser uma exceção). Mas seguimos na esperança por ver que mais exemplares de Eduardo Gama estão por aí consertando esse mundo e suas estruturas.

Também tem um desabafo para fazer ou uma história para contar? Então senta que o divã é seu! Envie seu relato para liane.thedim@azmina.com.br

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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