Parceiros que controlam o dinheiro de suas companheiras, as proíbem de trabalhar, que destroem seus pertences, roupas e documentos. Todas nós conhecemos – ou já vivemos – histórias assim. Esse é um tipo de violência doméstica contra a mulher que muitas vezes passa despercebida, mas é prevista na Lei Maria da Penha, que hoje completa 13 anos de existência.
A violência patrimonial acontece quando o outro usa o dinheiro ou bens materiais da mulher para ter controle sobre ela. Alguns sinais de violência patrimonial são: destruir objetos, esconder documentos, trocar as senhas do banco sem avisar, negar acesso ao dinheiro do casal.
“Em termos práticos, a violência patrimonial acontece quando um quer tirar proveito dos bens do outro ou se sente mais merecedor em ter os bens que foram conquistados quando o casal estava em comunhão de bens”, explica a terapeuta de relacionamentos Sabrina Costa.
Tainã Góis, advogada especialista em direito das mulheres e membro da Rede Feminista de Juristas, explica que desde 2015 também é considerada violência patrimonial a falta de pagamento de pensão alimentícia – quando não faltam condições econômicas para tanto.
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Mas nem todas as condutas que podem onerar o patrimônio da mulher estão previstos no escopo da lei. “Como nos casos em que o companheiro deixa de contribuir com as contas da casa, quando os encargos financeiros são mal distribuídos em prejuízo da mulher, sem que ela consiga alterar a situação, ou quando ele emprega o dinheiro da família de forma irresponsável”, exemplifica a advogada.
Desigualdades que alimentam o abuso
A falta de independência financeira pode fazer com que muitas mulheres fiquem presas em relacionamentos. Como se separar sem ter condições de se sustentar? Por conta disso, é comum que a violência patrimonial ocorra nos momentos de brigas e de término do relacionamento.
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As desigualdades de gênero, tanto na divisão das tarefas domésticas e familiares quanto no mercado de trabalho, reforçam o controle financeiro do homem sobre a mulher. “Muitos homens acreditam que têm mais direito sobre os bens do casal por terem saído para trabalhar enquanto a mulher cuidava dos filhos”, diz a terapeuta.
E mesmo as que trabalham ainda podem ter o valor da sua carreira diminuída frente ao trabalho do parceiro. “Elas sofrem com isso dentro de casa também. Por exemplo, quando o marido acha que a mulher é quem tem que resolver as questões domésticas porque ele ‘precisa trabalhar’, sendo que ela também trabalha e tem suas obrigações profissionais tanto quanto ele”, afirma Daiane Daumichen, psicóloga especialista em comportamento e traumas.
“Como se só o trabalho do homem fosse importante. Se a criança adoece, é a mulher que precisa faltar, o que muitas vezes gera impactos negativos em sua carreira. Nesses casos, já ouvi relatos de mulheres que não aguentaram a pressão do marido e saíram do emprego dos sonhos, a fim de ‘aliviar’ o clima dentro de casa”, completa.
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É crime e pode ser denunciado
A violência patrimonial é crime e o agressor pode ser denunciado. A Lei da Maria da Penha traz amparo legal para as vítimas de violência patrimonial, bem como os outros tipos de violência doméstica: física, psicológica, sexual e moral. A advogada Tainã Gois recomenda que as vítimas registrem boletim de ocorrência sobre o abuso, preferencialmente em Delegacias da Mulher, se possível.
Ela afirma que o delegado ou delegada devem registrar a ocorrência ainda que provas não sejam apresentadas, pois a acusação se enquadra na Lei Maria da Penha.
“A lei tem um dispositivo que prevê a possibilidade de o juiz dar uma medida liminar para que sejam restituídos os bens que foram subtraídos [da vítima]. Essa medida é importante, pois garante imediatamente a restituição dos meios de trabalho da mulher sem que ela precise esperar todo o processo”, explica Tainã.
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O maior desafio nesses casos é conseguir reunir provas. Históricos de depósitos e transações financeiras que mostram o salário da mulher sendo depositado em uma conta que ela nunca movimenta, por exemplo, pode ser um começo.
“No caso da violência doméstica a vítima em geral tem menos poder, o que pode dificultar a produção de provas ou a posição da denunciante. O melhor caminho são testemunhas, o que nem sempre é possível. Gravações de celular ou fotos também são aceitas como prova. Em casos extremos, é possível requerer um mandado de busca e apreensão, para que o objeto reclamado seja então procurado pelas autoridades policiais”, afirma a advogada.
Normalmente a violência patrimonial vem acompanhada de outros tipos de violências, geralmente psicológicas. Então além da denúncia, buscar terapia é importante para as vítimas superarem os abusos, segundo as psicólogas.
Mulheres são as maiores vítimas
Não existem estatísticas nacionais sobre a incidência de violência patrimonial, mas o Dossiê Mulher 2018 com dados do estado do Rio de Janeiro dá uma panorama sobre esse tipo de abuso. O levantamento mostra que ele atingiu mais mulheres do que homens no âmbito da violência doméstica e familiar em 2017, com elas representando até 70% das vítimas dos delitos dessa natureza.
O principal tipo de violência patrimonial contra mulheres foi o crime de dano (50,4% dos casos), seguido da violação de domicílio (41,8%) e supressão de documentos (7,8%). Companheiros ou ex representam a maioria dos autores (43,3%) da violência. Se forem considerados também pais, padrastos, parentes e pessoas próximas, o percentual sobe para 59,9% dos acusados.
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A residência foi o local em que mais ocorreu a violência patrimonial, com 79,3% dos casos. Considerando-se os três delitos analisados (violação de domicílio, dano e supressão de documentos), mais da metade dos casos ocorreram em contexto de violência doméstica e familiar e foram qualificados nos termos da Lei Maria da Penha. A principal base de dados do Dossiê foram os Registros de Ocorrência (RO) das Delegacias de Polícia Civil de todo o estado.