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Após “serial killers afetivos”, muitas mulheres preferem ficar sozinhas, diz Tia Má

A produtora de conteúdo Maíra Azevedo lança seu primeiro livro: "Como se livrar de um relacionamento ordinário"

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Tia Má
Tia Má lança livro sobre relacionamentos abusivos (Foto: Divulgação)

Conhecida por falar sobre relacionamento, ela é de tudo um pouco. Repórter por muito anos do maior jornal da Bahia, Maíra Azevedo, que para o grande público é a Tia Má, viu a sua carreira mudar quando um entre tantos vídeos das suas redes sociais ganhou o grande público. “Eu fazia esses conteúdos brincando, me divertia com eles, não tinha intenção alguma de profissionalizar isso”, diz. 

O sucesso dos vídeos levou Maíra ao programa Encontro com Fátima Bernardes, da Rede Globo, em 2016. Depois, foi convidada para ser consultora da atração, dando dicas sobre relacionamento. No ano seguinte, deixou seu trabalho como repórter para lançar a sua peça de stand up comedy “Tia Má com a Língua Solta”, em que discute machismo, racismo e violência contra a mulher. 

Com a intimidade que ganhou com o público nas redes sociais, em especial com as mulheres, e sua experiência pessoal com homens, que chama de “serial killers afetivos”, Tia Má lança seu primeiro livro: “Como se livrar de um relacionamento ordinário”.

Em uma conversa com a Revista AzMina, ela “tira o sapatinho e pões o pé no chão”, como diz seu bordão, para contar como chegou até aqui e o que as mulheres podem fazer para se livrar de um relacionamento abusivo. 

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AzMina: Por que você decidiu escrever sobre este assunto?

Tia Má: Eu descobri que eu não decidi, decidiram por mim. Quando eu comecei a falar muito sobre relacionamento abusivo, sobre relacionamento ordinários, que muita gente naturaliza, as pessoas me pediram para escrever sobre isso. E eu não me sentia preparada para dividir com as pessoas aquelas situações que eu tinha vivido. Até que, de repente, uma menina me parou na rua, me abraçou e me pediu pra não parar. 

Eu costumo dizer que essa menina é responsável por tudo que vem acontecendo na minha vida, porque foi alguém que disse que estava sentindo o quanto a vida estava sendo transformada a partir das mensagens que eu postava. Isso, pra mim, foi a grande chave. Saber que eu poderia compartilhar as histórias que eu tinha vivenciado para impedir minimamente, ou pelo menos diminuir, as dores de outras mulheres. Eu digo que esse não é um livro de autoajuda, mas um livro de reconhecimento de falhas para que a gente possa entender que é possível superar.

AzMina:  O que você quer dizer quando diz “tire a sapatinho e ponha os pés no chão”?

Tia Má: Que é possível cair na real, que a gente não precisa ficar neste deslumbre de que a gente precisa de alguém do nosso lado. 

AzMina: Você usa uma linguagem bem diferente da do jornalismo: trata o público com intimidade, escreve em primeira pessoa, transmite constantemente que a sua seguidora é amada. Por quê? 

Tia Má: Eu decidi me desnudar para causar a sensação de intimidade. Eu não quero ser uma professora, eu não queria que tivesse um tom professor. Eu queria assumir que eu também já cometi vários erros. Eu não queria que nenhuma mulher se sentisse inferior por estar vivendo uma relação dessa, porque muitas vezes ainda a mulher se sente culpada. 

AzMina: O livro é baseado em aprendizados que você adquiriu se relacionando com diferentes homens. Quando você virou a chave e entendeu que amor não é sinônimo de sofrimento?

Tia Má: Cada relação minha é um aprendizado. Em cada relação que eu sofria, eu entendia que eu não queria mais. Não é porque eu escrevi o livro que eu não possa ter uma relação e não vá passar mais por uma relação abusiva e que a mulher que ler não vai passar. Mas a grande pegada do livro é que ao menor sinal de sofrimento, ao menor sinal de que você está adoecendo com aquela relação, é o momento de você romper. 

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AzMina: No começo do livro você fala como ser uma princesa diferente: que paga as contas, que enfrenta assédio, que tem filhos pra criar. Com quais mulheres você quer falar? 

Tia Má: A maioria das casas brasileiras é chefiada por mulheres. A gente ainda tem essa ideia de que o homem é o macho provedor, mas em 56% dos lares são as mulheres que são responsáveis por garantir a comida, então eu quero falar com essa mulher. Quando eu falo da mulher que trabalha, eu falo da mulher que, mesmo empregada, é o tempo todo questionada com culpas, pelas obrigações dela de mulher, de mãe. 

AzMina: Você conta que descobriu ainda criança “que mulheres negras não são a primeira opção para receber afeto”. O espaço afetivo para as mulheres negras ainda é esse? 

Tia Má: Eu aprendi muito nova, quando eu não tinha noção do conceito de solidão da mulher negra. Eu lembro que na minha primeira infância ninguém queria ser meu par nas festas juninas. Eu nunca era a primeira escolhida para dançar valsa, eu era chacota. Ainda hoje é assim. Uma coisa que permeia o imaginário popular é que e as mulheres negras são mais fortes, então elas podem suportar tudo. A gente recebe menos declaração de amor, menos carinho, os homens têm menos coragem de postar fotos com a gente. Parece que a gente ainda não é suficiente. E isso ainda é muito cruel, você perceber que existe um número grande de mulheres negras que fazem esse tipo de crítica porque é muito real. 

Tenho 39 anos, tenho um filho, mas eu nunca fui casada. É a grande realidade das mulheres negras. A gente é amiga, vai morar junto, mas poucas são as mulheres negras que casam ou que casam formalmente. Eu falo para o meu parceiro que ele tem certos comportamentos comigo porque eu sou uma mulher negra, e eu reconheço isso. E é muito duro, quando você tem essa consciência porque aumenta a sua dor. Quando você sabe que o fato de você ser uma mulher negra tira de você alguns direitos, a capacidade de realização dos seus sonhos, você adoece mais. 

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AzMina: Por que é tão difícil se livrar de um relacionamento abusivo?

Tia Má: Por conta do machismo estrutural. Enquanto os homens são estimulados a colecionar várias relações, as mulheres são cobradas para manter uma relação, e a mulher que fica com mais de um cara, ela é tida como uma mulher promíscua, ela não é tida como uma mulher para casar. E isso é muito cruel, porque são esses caras que ajudam a matar essas mulheres. Matar fisicamente, emocionalmente e psicologicamente. Eu defino no livro como “serial killers afetivos”, porque muitas mulheres depois de passar por relações tão ordinárias estão escolhendo viver na solidão, porque é doloroso demais. 

A dificuldade de se desvencilhar de uma relação é justamente por conta da dependência emocional, dessa cobrança social, onde muitas vezes a mulher que decide romper com aquela relação é vista como uma mulher fracassada. E também tem uma romantização do sofrimento. Aquela pessoa que quer ser feliz ao seu lado continua sendo uma pessoa escrota. E você continua naquela crença, de que se você se livrar dele vai encontrar outro igual.

AzMina: Você fala bastante sobre a sua juventude no livro. O que há de diferente nas relações afetivas na adolescência?

Tia Má: Na adolescência e na juventude você está vivendo uma fase que é da formação, você quer ser igual a todo mundo. Quando você está naquela fase que tudo o que você assiste são aquelas comédias românticas, aquela idealização do amor romântico, que o cara vai te pedir em casamento ajoelhado, que vai te dizer que você é linda, que vai olhar e você é estimulada a acreditar nisso, então você passa a sua adolescência e a sua juventude aspirando essas coisas. E aí, quando você chega na idade adulta, talvez você entenda que isso não role. Hoje em dia, a minha aspiração é colocar comida dentro de casa, é conseguir sustentar meu filho. Meu maior sonho  é conseguir sustentar o meu trabalho, é o que mais me faz feliz. 

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AzMina: Por que as mulheres continuam suportando essas relações? 

Tia Má: Eu não acho que elas suportam. Eu acho que tem um processo de aprendizado onde algumas delas já estão rompendo essas relações. Tem muitas mulheres que não aceitam mais, porém ainda ficam presas. Mas eu acho que existe um avanço real, a gente fala sobre relacionamento abusivo, coisa que não fazíamos antes. Cada pessoa tem o seu processo. 

AzMina: Que mensagem você quer passar com o livro? 

Tia Má: Que a gente tenha coragem de romper com esse ciclo violento com a gente. Inclusive, quando eu digo a gente, é comigo também. Que eu tenha coragem de romper com toda e qualquer relação que me adoeça, com toda situação que não me deixe feliz. Que a gente tenha coragem de entender que a gente pode ser feliz. Porque a gente aprendeu “é impossível ser feliz sozinho”, mas a gente pode ser feliz com um amigo, com uma amiga, tem outros tipos de companhia. O afeto que mata não me faz feliz.

AzMina: Você tem falado bastante sobre o BBB, em especial sobre o comportamento dos homens. Como você vê o que acontece no programa? 

Tia Má: O Big Brother é como se fosse uma amostra do que acontece no mundo aqui fora. Eu sempre faço isso, pego alguns exemplos do que acontece lá dentro e trago para o mundo real para gente ver que essas situações acontecem muito perto da gente, mas às vezes a gente não percebe. Essas posturas machistas, odiosas, nos travam, mas a gente não consegue dar conta porque é alguém que a gente gosta. Por isso é importante a gente falar sobre isso. A ideia é que as pessoas entendam que aquilo que acontece no BBB pode estar acontecendo dentro da casa delas. 

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