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“Levei anos para perceber que meu relacionamento era abusivo”

Ele me moldou com a culpa, me tornou em uma criada, uma adolescente cheia de devoção por um homem que necessitava de alguém beijando seus pés diariamente.

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O Divã de hoje é da Ana. 

Foto de Surian Soosay
Foto de Surian Soosay

A primeira vez que meu ex-namorado mostrou quem era de verdade, foi quando ele me bateu na festa em que ele me viu ficando com outro cara. Nós não estávamos mais namorando fazia alguns meses e ele fez de TUDO para eu não ir na festa quando ficou sabendo que eu estaria lá. Me chantageou, me xingou, me ameaçou: mas pela primeira (uma das poucas, na realidade) eu o confrontei e disse não: eu estava decidida a ir naquela festa. É difícil esquecer a visão dele escorado na janela de vidro do segundo andar da casa noturna, olhando para mim com ódio nos olhos; não era mágoa, não era tristeza de quem ama e é deixado de lado, era raiva.

Eu senti medo quando vi isso, e estava certa em temer: quando eu entrei naquela festa, toda vez que ele passava por mim, ele me chutava, esbarrava em mim com força, fazia de tudo para tentar me agredir fisicamente. Sim, um cara maior de idade, com mais de 1,80 de altura, agredir uma menina de 16 anos, magra, pequena e bêbada. E tanto tentou que conseguiu: enquanto eu ficava com um amigo de uma amiga, camuflada na multidão da pista de dança principal para ele não ver o que ocorria, eu senti um chute forte nas minhas costas. Quando me virei, fui carregada pelo braço por ele. Era um corredor escuro da festa, uma espécie de saída de emergência na qual não havia seguranças, não havia ninguém.

Senti aquelas mãos grandes e trêmulas de raiva no meu pescoço, o hálito de álcool muito próximo do meu rosto, mas não consegui ouvir do que eu fui xingada.

Eu apenas senti medo pela minha integridade física e pelo o que podia acontecer comigo (afinal eu tinha 16 anos, estava em uma festa sem meus pais saberem, com uma carteira de identidade que não era minha, consumindo álcool). Eu me debati e ele me soltou: tentei chutar e cai de costas no chão. Neste momento, alguns rapazes que passavam notaram a confusão, notaram que eu estava machucada e ele fugiu. Subiu as escadas para o segundo andar na festa rapidamente, tentando escapar das pessoas que começaram a entender que ele havia me agredido. Um certo frenesi começou a se formar (homens xingando ele pela covardia, tentando o cercar) e eu comecei a chorar: estava perdida das minhas amigas e havia acabado de ter sido agredida pelo meu ex-namorado. Sai pela festa desesperadamente em busca de um rosto conhecido, e após muito rodar pelo local, achei minhas amigas.

Não lembro muito bem o que aconteceu, apenas de ir embora para casa da minha amiga muito bêbada e, chorando incansavelmente, cheia de culpa dentro de mim: eu merecia ter apanhado, eu era uma puta, eu era uma sacana.

Acordei no outro dia e fui direto para o banheiro vomitar, afinal meu emocional estava em fiapos. Resolvi tomar um banho, e saindo do box me olhei no espelho embaçado: dedos marcados no meu pescoço, em um tom de roxo horrível. Eu me adiantei em tentar esconder com maquiagem e um cachecol da minha mochila, desesperada em não mostrar para ninguém o que havia acontecido. Naquela noite na casa da minha amiga fiquei sem bateria e sem carregador, só consegui ligar meu celular quando cheguei na minha casa, e o que eu vi foi aterrorizante: haviam inúmeras ligações perdidas dele, várias e várias mensagens de texto, implorando por perdão de todas as formas possíveis e lógico: muita tortura psicológica como sempre.

As mensagens diziam que ele havia se descontrolado, mas que eu tinha que entender que eu provoquei tudo aquilo, que eu o havia magoado profundamente e que hoje ele queria me ver. Sai correndo de casa naquela tarde, com chuva e contrariando as ordens da minha mãe, encontrei ele em um boteco perto da minha casa. Ele chorou muito, me xingou, disse que a culpa era toda minha, que eu havia destruído o coração dele, jogado fora tudo que havíamos passado. Eu estava me sentindo a pior pessoa do universo, mas ainda sim no fundo havia uma raiva imensa por algo que eu nem sabia explicar. Mostrei para ele a marca das mãos dele no meu pescoço, mas ele ignorou. Trocou o foco, mudou de assunto, me culpou mais um pouco, disse que não era nada. E eu somente pude abaixar a cabeça e concordar, como uma criança que fez merda. Sim, eu era uma criança que havia feito merda, mas a única coisa pela qual eu não deveria me culpar era ter sido agredida por um monstro que achava que era meu dono.

Após mil lições de moral, ele disse que nunca iria esquecer aquilo e que iria ser difícil de me perdoar. Hoje em dia, eu digo o mesmo para ele. Já tive milhões de pesadelos com essa noite e toda vez que passo na frente daquela maldita casa noturna, eu o vejo na janela do segundo andar com aqueles olhos: olhos de raiva. Olhos de quem, se tivesse a oportunidade, teria feito coisas muito piores comigo naquela noite. Eu fui salva por estranhos que circulavam pela festa e me viram: o covarde (ironicamente) correu com medo de ser agredido.

O covarde voltou a ser meu namorado alguns meses depois. E TODAS as oportunidades que ele teve de jogar aquela noite na minha cara, ele utilizou. Eu era uma puta, eu era uma sacana, eu fiquei com outro homem na frente dele, eu traí sua confiança, eu estava suja e impura por ter beijado outro homem, eu era dele e somente dele, de mais ninguém. Sempre que ele fazia merda comigo e eu iniciava uma briga, apenas se ouvia “aquela vez tu ficou com aquele cara na festa na minha frente…” e eu me sentia culpada.

Mas se você pensa que este relacionamento cheio de amargor não durou muito: engana-se. Ele me moldou com essa culpa, me tornou em uma criada, uma adolescente cheia de devoção por um homem que necessitava de alguém beijando seus pés diariamente. Não havia romantismo, não havia presentes, não havia juras de amor, não havia elogios, não havia orgulho do relacionamento: havia apenas um homem que usou uma garota de seus 15 até seus 19 anos como um troféu juvenil, que aparou todas as vontades daquela menina, seus gostos, sua sexualidade, sua voz.

Ele jogava seu jogo imundo todos os dias: distorcia minhas opiniões, desprezava tudo o que eu gostava e, sempre que possível, usava de desculpa sua vida pobre, sua infância difícil.

Afastei-me de amigas do colégio (putas e babacas, segundo ele) e foi ficando cada vez mais difícil fazer novas amizades, afinal ele era a única pessoa que eu não havia afastado, ele era tudo; eu era nada, eu não podia nada.

Demorei muito tempo para entender tudo que havia acontecido aquele dia: somente quando terminamos o namoro eu me dei conta. Dei conta das agressões (física, como a desse dia, e psicológicas, que aconteceram praticamente até nosso último dia de namoro), das humilhações em público (como quando ele me xingava na frente dos amigos por eu estar “se putiando” por algum motivo que ele inventou da cabeça dele), de como ele tratava mal minhas amigas e a minha família (amigos homens eu já não possuía mais, afinal ele me obrigou a me afastar de todos, excluir do facebook, dos contatos do celular, etc). Dei conta de que não estava tudo bem quando ele queria transar comigo e eu não queria (e nem tinha chance de dizer que não). Doeu muito lembrar as vezes que chegamos em casa muito bêbados de alguma festa e ele me jogava no chão do quarto, transava comigo e machucava meus joelhos, meus cotovelos, meu rosto, minha autoestima. Doeu muito lembrar a noite em que meu avô faleceu e eu não fui confortada por um abraço carinhoso, por palavras doces de um namorado, pelo amor de um parceiro: fui confortada sendo estuprada. Fui confortada por um travesseiro molhado de lágrimas enquanto ele transava comigo naquela noite. Mas afinal, eu era namorada dele, ele só queria fazer eu esquecer aquela dor horrível de ter perdido alguém que eu amava muito há poucas horas. Era minha obrigação atender todos os dias as necessidades sexuais do meu namorado que não conseguia se controlar, era minha obrigação enfiar a cara no travesseiro enquanto eu chorava e ele me comia para não fazer barulho e ele poder terminar sua perversão em paz, não é mesmo?

Uma mensagem para meu ex

Eu espero que você esteja lendo isso. Eu sei que você tem uma nova namorada agora. E você não imagina o quanto eu rezo todos os dias por ela. Eu não sei se você mudou, se você pensou nos seus atos, se seus estudos fizeram refletir sobre os direitos das mulheres, sobre respeito e amor com o próximo, mas para mim você sempre será um monstro. Um jovem egocêntrico com vinte e poucos anos, criado por uma família conservadora, achando que podia transgredir todas as regras para provar ao mundo – e a você mesmo – que apenas você tinha razão sobre as coisas da vida, que achava que podia ser dono de uma mulher, que podia controlar a vida dela. Eu rezo para que a saúde mental e física da sua nova namorada seja poupada: a minha não foi. E não há um dia somente que eu não lembre de todo o mal que você me causou; todo esse mal me empurrou para frente. Serviu para nunca mais eu deixar qualquer homem semelhante a você se aproximar de mim. Serviu para acreditar em quem eu sou, na mulher maravilhosa que eu sou, e que homem nenhum nesse mundo tem direito a faltar o respeito comigo, com minhas familiares, com minhas amigas, ou com qualquer outra mulher desse mundo. Serviu para dar valor às minhas vontades, aos meus sonhos, aos meus sentimentos.

Quanto a você? Eu não desejo nada para sua vida. Nem felicidade, nem amor, nem sucesso. Eu não sinto nada por você, apenas um grande poço de indiferença. Apenas desejo que você tenha medo ao ler esse texto: medo de todo mundo saber que você é um agressor, medo de sua família descobrir, medo dos seus amigos descobrirem quem você é e como você pensa. Viva com medo todos os dias de descobrirem a fonte desse texto; assim como eu morria de medo todos os dias que você ficasse bravo comigo, me reprimisse, me repreendesse, me humilhasse, me batesse por ser quem eu era, por sentir o que eu sentia.

E acima de tudo: desejo que nenhuma mulher desse mundo sofra o que eu sofri com você.

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