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Sem direito a licença-maternidade, trabalho que começa antes de o sol raiar

Exigência de produtividade máxima desconsidera desafios da maternidade em ambientes machistas

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A integração de fazendas exportadoras de frutas a mercados internacionais exigentes trouxe relativos avanços para os trabalhadores, como o alto índice de formalização dos vínculos trabalhistas, a retirada de moradias nas instalações dessas empresas e regras mais rigorosas no manejo dos agrotóxicos. 

Filha de Maria Doloroza dos Santos, Elaine Maria dos Santos Oliveira começou a trabalhar aos 14 anos, em uma época em que era comum ter adolescentes na labuta nas roças. Aos 35, acumula quase duas décadas de trabalho com as frutas.“A rotina é acordar quatro, quatro e meia e fazer comida. Leva o menino nas casas das babás. Vai trabalhar, volta, pega menino”, conta Elaine, descrevendo um cotidiano comum a tantas mulheres e mães, mas especialmente pesado para aquelas que trabalham no campo, sob o sol forte do semiárido. 

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Elaine. Foto: Raquel Torres

É preciso levar todas as refeições, desde o café da manhã até o lanche, inclusive o cafezinho para ajudar a despertar. As fazendas oferecem, na melhor das hipóteses, cesta básica. A pauta da alimentação se repete, ano a ano, sem grandes avanços, nas negociações anuais entre sindicato e categoria. 

Essa rotina cíclica e desgastante se repetiu nas entrevistas que fizemos com essas trabalhadoras ao longo de duas semanas de viagem. Ao retornar pra casa, começa tudo outra vez: preparar o jantar e cuidar da casa. Para as que são mães, é o único tempo que resta para os filhos. 

Mãe de quatro adolescentes e crianças, Elaine não teve direito à licença-maternidade. “Sempre deixei com as babás, desde quando nasciam. Nunca teve esse negócio de passar quatro, seis meses até parar de mamar, não. Eu mesma tirava do peito e ia trabalhar. ” 

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Hoje o mais velho está com 15, e o caçula, com 3 anos. Embora prefira a roça, Elaine está concluindo cursos de beleza e estética, área em que sonha trabalhar. O mais novo frequentou as aulas a tiracolo. 

“A estrutura da mulher não aguenta”

Elaine aguardava diagnóstico para problemas ginecológicos que tornaram difícil seguir com o trabalho no campo. “Segurar esse corpo em pé de sete da manhã até quatro horas da tarde não é fácil. Não aguento mais”, lamenta. 

Nenhuma empresa cujos trabalhadores entrevistamos oferece plano de saúde ou qualquer tipo de assistência aos que adoecem. Isso nem sequer entra na pauta de negociações anuais entre empresas e sindicatos, uma vez que é preciso lidar com questões ainda mais elementares na vida desses trabalhadores e trabalhadoras. 

Eles recorrem ao Sistema Único de Saúde (SUS) para lidar com agravos causados, na grande maioria das vezes, pelo trabalho insalubre e por uma rotina que não permite descanso. Mesmo cidades ricas como Petrolina não dispõem de uma rede de saúde pública que dê conta de atender às necessidades dessa população. 

Nora de Maria Doloroza, Diana de Souza Lopes, de 42 anos, era dona de casa quando começou a trabalhar com as frutas. Aprendeu com a sogra a lidar com as uvas. Empatia, sororidade e amizade são características presentes nas relações de trabalho entre mulheres. “A gente veio de lá de Salgueiro. Minha primeira ficha foi em 2007. De lá pra cá, não parei mais, não. Ela me levava junto pra roça e me ensinou”, lembra. 

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Diana trabalhava de carteira assinada no mesmo produtor havia nove anos. Quando a encontramos, em setembro de 2022, ela tinha acabado de fazer um acordo para ser demitida. O objetivo era usar o dinheiro para fazer uma histerectomia – cirurgia de retirada do útero. Ela aguardava para fazer o procedimento pelo SUS desde 2019. 

De lá pra cá, os miomas cresceram, o útero aumentou três vezes de tamanho e os incômodos se tornaram difíceis de suportar. “Você vê, a gente está lá no campo colhendo. Depois do campo, vai pro pack embalar a uva. O dia todinho em pé. A estrutura da mulher não vai aguentar.” 

Empregada por um produtor considerado médio, teve sorte em conseguir chegar a um acordo. Muitas empresas – incluindo grandes exportadoras certificadas – obrigam o funcionário a se demitir quando adoece para não arcar com as verbas rescisórias. O valor que recebeu na demissão acordada com o patrão foi usado para fazer os exames pré-operatórios em clínicas particulares, dada a demora em ter acesso a esses serviços no SUS.

Diana não conteve as lágrimas. Seu maior medo não é a mesa de cirurgia, mas sim não poder retornar ao trabalho e com isso prejudicar a criação dos filhos – uma moça de 21 anos, um rapaz de 18 e uma menina de 12. 

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Diana. Foto: Raquel Torres

Era dela a única renda regular da família. Duas décadas de trabalho com uvas, mangas e goiabas renderam ao marido, Manuel Ricardo Santos Oliveira, uma hérnia de disco e a aposentadoria precoce por invalidez, aos 37 anos. Assim como a irmã Elaine, Manuel começou a trabalhar aos 15 anos. 

Ver os filhos formados é seu maior sonho. Nenhum deles quer trabalhar na fruticultura. 

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Punidas quando se tornam mães 

Enaltecidas pelo setor, as mulheres trabalhadoras também pagam um preço alto em sua vida pessoal e familiar. Pouco recebem em troca. Um exemplo dessa contradição entre a imagem criada para a venda dessas frutas no exterior e a realidade concretamente colocada é a ausência de benefícios ou mesmo a violação a direitos trabalhistas quando elas se tornam mães. 

Foram vários os relatos de trabalhadoras que sofreram retaliações por se ausentar para levar os filhos ao médico ou acompanhá-los em internações. Ter crianças pequenas em casa torna mais difícil a permanência nesse mercado de trabalho. 

“O trabalho da mulher na fruticultura é algo muito desafiador. O homem não fica em casa cuidando da criança. Dificilmente vai acompanhar ao médico ou à escola ver o que está acontecendo quando é solicitado. Então culturalmente isso recai sobre as mulheres”, avalia José Manoel dos Santos, o Zezinho, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Juazeiro (BA). 

Acompanhar filhos menores de idade em consultas ou internações é um direito garantido pela legislação. Mas as faltas, mesmo que justificadas, são muito mal vistas pelas empresas. A exigência é produtividade máxima. 

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“Pra eles um atestado é coisa do outro mundo, mas pra gente que precisa não é. Principalmente pra quem tem filho. Eles falavam ‘vixi, de novo?’ Atestado de novo?” criticou Joana*, de 36 anos, ex-funcionária de uma grande empresa produtora de frutas orgânicas para exportação em Jaguaruana, no Ceará. 

Em uma das ocasiões em que precisou se ausentar do trabalho, a filha sofreu uma queda e teve que colocar pinos nos braços. As consultas ao ortopedista em Russas, única cidade onde conseguiu atendimento, tinham de ser acompanhadas pela mãe. “Ela sofreu um bocado. E eu também.” 

Joana hoje voltou a ser dona de casa. Vem de uma família de agricultores, cresceu ajudando o pai nas chamadas culturas de inverno (período chuvoso no sertão): milho, feijão, algodão. Trabalhou três anos e meio nesta empresa, e saiu por vontade própria, em outubro de 2021. Os filhos têm entre 17 e 10 anos. 

*O marido e a filha de Joana ainda trabalham lá – por este motivo não a identificamos com seu verdadeiro nome.  

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Mãos de Joana. Foto: Raquel Torres

Como a grande maioria, a necessidade de trabalhar fora apareceu após a maternidade. Um caminho para proporcionar uma vida melhor para os filhos. Mas o preço pago foi alto. “Eu saía pra Cacimba Funda pra trabalhar e deixava eles com minha mãe. Dormia na sogra porque a distância era muita. Minha menina tinha quatro anos”, lembra Joana. “Só via no final de semana. E era uma coisa rápida. Vocês sabem, né? O sábado passa rápido, o domingo mais ligeiro ainda. Passava um dia e meio com eles.” 

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Conseguir trabalhar na mesma cidade onde vive amenizou o afastamento dos filhos, mas ela seguia dependendo da mãe. “A empresa é boa, mas a minha mãe já estava com eles desde quando eu trabalhava em Cacimba Funda. Tinha que dar uma folguinha também pra ela. Menino pequeno dá trabalho. E eu queria vivenciar meus filhos”, conta Joana.

“Se tivessem acesso a terra e água não estariam ali”

A restrição de água e terra para a maior parte dos trabalhadores não deixa outra alternativa se não se submeter a qualquer tipo de atividade. Essa foi uma das conclusões do geógrafo e pesquisador Diego Pessoa Irineu de França, autor de uma tese de doutorado sobre o tema. Em sua pesquisa, rodou por vários perímetros irrigados entre Juazeiro e Petrolina. Queria entender como era a realidade das pessoas que vivem dessa produção, para além dos dados macroeconômicos.

“Há muitos relatos de mulheres que sinalizam isso: é muito bom trabalhar, mas se tivessem acesso a terra e água não estariam ali. É o dilema em que as pessoas são colocadas. Ficam reféns desse modelo”, conclui. Apesar das condições difíceis, Petrolina admira a grande produção, a fruticultura e a exportação. “Há essa dimensão subjetiva: gente que sofre, mas enaltece o modelo como viável. Mesmo nas áreas de assentamentos rurais”, observa. 

Mulheres protagonizam resistência em Apodi

Hoje o capital fruticultor mira uma região de maior disponibilidade hídrica: a Chapada do Apodi, em Rio Grande do Norte. A recente conquista da abertura do mercado chinês para o melão brasileiro, em 2020, aumenta a pressão sobre territórios ainda não explorados pelas grandes exportadoras. A expectativa é que a atual produção dobre para dar conta da demanda da China. O melão é uma fruta que consome grande quantidade de água. Um quilo usa, em média, 196 litros. 

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Nessa região, a retomada do perímetro irrigado Santa Cruz do Apodi, conhecido como Projeto da Morte, enfrenta forte resistência de comunidades camponesas com tradições históricas e socioeconômicas próprias, ligadas à produção agroecológica e familiar. Há dez anos, Apodi luta contra a chegada das grandes empresas produtoras de frutas. 

“O primeiro impacto, que para mim foi muito marcante, foi ver casas de prostituição próximas a essas empresas, em zona rural. Outra coisa que observamos é o fluxo de drogas. Muitas vezes para aguentar o ritmo de trabalho”, relata o presidente do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Apodi, Francisco Agnaldo de Oliveira Fernandes. Houve também incidência maior de gravidez entre meninas e mulheres nessas comunidades.

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Antonia Gilvana. Foto: Raquel Torres

Secretária do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Apodi, Antonia Gilvana Mota Sousa, de 42 anos, era uma das lideranças presentes em um seminário que aconteceu em setembro de 2022. Centenas de agricultores se reuniram ao longo de três dias para discutir o impacto da fruticultura de exportação. “Como mãe, eu penso logo nos meus filhos. Vamos para onde? Eu vou oferecer o quê? Aqui eu tenho o meu quintal. Eu tenho a minha produção, tem o bode, tem a galinha, eu tenho o ovo, eu tenho a fruta para fazer o suco. Eu saindo daqui vou dar o quê pra eles comerem?”

Com mais de vinte anos de atuação sindical, Gilvana participou ativamente da formação de base entre jovens, entre as quais muitas mulheres. Ela cita exemplos fortes de protagonismo feminino que testemunhou, fruto do trabalho de conscientização feito diretamente com as agricultoras. 

No mais marcante, Gilvana conta das mais de duas mil cartas escritas à mão por mulheres e postadas para a então presidenta Dilma Rousseff em 2011, meses após a publicação do decreto que desapropriou uma área de mais de 13 mil hectares onde viviam cerca de 150 famílias de pequenos agricultores. “Cada mulher na sua comunidade fez o trabalho de formiguinha escrevendo. E ela [Dilma] respondeu que estava do lado da vida e que estava orgulhosa por ter sido um trabalho realizado por mulheres. O nome dado foi ‘Somos todas Apodi’”, relembra. 

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“Chego a me arrepiar porque foi um momento de muita junção, sabe? Muito agrupamento, muita coragem. Foi um período bem crítico que as comunidades enfrentaram”, conta Gilvana. 

Mas o apoio expresso na resposta às mulheres de Apodi ficou apenas no campo simbólico: as obras para a construção do perímetro irrigado se iniciaram em 2013. E foram paralisadas dois anos depois com apenas 24% da estrutura do perímetro irrigado concluída. 

Conciliar interesses e poderes tão distintos dá uma ideia do tamanho do desafio que o governo Lula enfrentará nos próximos anos. 

Leia a parte 1: Exploração e violações: a rotina das mulheres na produção de frutas

*A série especial sobre fruticultura de exportação teve o apoio da Oxfam Brasil

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