No dicionário, a palavra consentimento é definida como “manifestação favorável a que (alguém) faça (algo).” Em campanhas de prevenção à violência e em materiais educativos, o termo é geralmente explicado a partir das relações afetivas, sexuais e românticas. Um cenário bastante usado é o de alguém que pede autorização para dar um beijo em outra pessoa, antes de se aproximar, de fato. O gesto só é visto como saudável se a permissão é dada. Do contrário, configura abuso.
A ideia de que é preciso consentir para, só então, alguma coisa acontecer, é algo que se popularizou ao longo dos anos. Prova disso é a presença do termo no meio jurídico.
Em diversas legislações o consentimento é usado para caracterizar um crime. O artigo 36º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica é um dos exemplos disso:
“a) penetração vaginal, anal ou oral não consentida, de carácter sexual, do corpo de outra pessoa com qualquer parte do corpo ou com um objecto; b) outros atos de carácter sexual não consentidos com uma pessoa; c) obrigar outra pessoa a praticar atos de carácter sexual não consentidos com uma terceira pessoa.”
Mas mesmo sendo constantemente atrelado às interações sexuais, é nesse cenário, que o significado da palavra entra numa zona cinza. Isso porque não há consenso, entre quem estuda o tema, sobre qual seria a melhor definição do que é consentimento.
Consentimento é igual batata frita
Em 2015 começou a circular na internet um vídeo que falava sobre consentimento usando a imagem de uma porção de batata frita. Cada letra da palavra FRIES, batata frita em inglês, era usada para explicar o que é, exatamente, o consentimento. De acordo com a animação, assim como é necessário todas as vogais e consoantes para formar a palavra FRIES, é necessário todas as situações apresentadas por cada letra para que o consentimento esteja presente. A explicação é dada da seguinte forma:
FRIES:
“F” de “free”, liberdade.
O consentimento só existe quando ele é dado de forma livre e sem pressão.
“R” de “reversible”, revogável.
O consentimento só existe quando você tem direito a mudar de ideia a qualquer momento.
“I” de “informed” , informado.
O consentimento só existe quando as consequências da permissão são informadas.
“E” de “enthusiastic”, entusiasmado”.
O consentimento só existe quando a autorização foi dita de forma clara e entusiasmada.
“S”, “specific”, específico.
O consentimento só existe quando é dado para coisas específicas, e não para tudo.
Em resumo, não é possível haver consentimento, se todas as partes – ou letras – não estiverem presentes no ato. Por ser didática e ilustrativa, a animação conseguiu alcançar muitas pessoas, mas ficou longe de encerrar o debate.
No livro “Precisamos falar de consentimento: uma conversa descomplicada sobre violência sexual além do sim e do não”, as autoras explicam que há pelo menos quatro outras formas pelas quais a ideia de consentimento já foi vista, historicamente. Todas foram estudados pela pesquisadora Milena Popova, autora do livro “Sexual Consent”.
1ª forma: ele nem existe
Na perspectiva do feminismo mais radical, o consentimento não existe.
Nessa linha de pensamento, meninas e mulheres são ensinadas a acreditar que a sua missão é satisfazer as necessidades sexuais dos homens, e não as próprias. Então numa sociedade como a nossa, seria quase impossível haver consentimento sexual genuíno, livre e não coagido. Como se sexo – para as mulheres – fosse feito “para” alguém, e não “com” alguém
O consentimento seria, então, “sem sentido, uma vez que as escolhas das mulheres estariam sempre limitadas pelas desigualdades sociais que impossibilitariam escolhas totalmente livres”, diz um trecho da obra.
2ª forma: não significa não
Nessa linha de pensamento, tudo que acontece depois do “não” é violência. Essa ideia esteve presente em campanhas de prevenção à violência contra mulheres nos anos 80. E foi usada para pedir mudanças nas leis que definiam estupro e outras violações sexuais.
A intenção era mostrar que abusos poderiam acontecer, mesmo quando a força física ou ameaça não estivessem presentes. Se a vítima disse “não”, qualquer coisa que acontecesse depois disso era abuso.
Essa vertente defende que seria possível retirar o consentimento da zona cinza, pra onde quase sempre é levado, caso “homens fossem ensinados e responsabilizados a ouvir e respeitar as expressões de não consentimento e as vontades das mulheres”. Em outras palavras, é preciso que mulheres falem “não” e que esse desejo seja considerado.
3ª forma: sim significa sim
Para que aconteça alguma coisa, de acordo com essa linha, é preciso que o “sim” seja dito de forma muito clara. Essa ideia nasce como uma oposição ao grupo anterior, o “não significa não”.
As principais críticas desse grupo ao antecessor é de que haveria uma segurança equivocada na ideia de que meninas e mulheres seriam totalmente livres para dizer ‘não’ quando não quisessem sexo. “E que esse ‘não’ seria definitivamente respeitado pelos homens, que não usariam de alternativas para pressionar, resmungar, ameaçar ou chantagear emocionalmente suas parceiras”, traz o livro.
Então para que aconteça alguma coisa, segundo essa perspectiva, é preciso que o sim seja dito de forma genuína, entusiasmada – como alguém que está a fim, mesmo. É como se consentimento não fosse só respeitar uma negativa, mas ver o sexo como uma relação de duas pessoas declaradamente interessadas.
4ª forma: abordagens críticas
Nessa linha, o consentimento é visto como algo que pode ser ineficaz, se não for visto de forma crítica. As mulheres têm a liberdade, a autonomia e o desejo questionados o tempo todo, então o direito de consentir em muitos casos não é garantido..
Mulheres podem dizer “sim” porque se sentem acuadas, com medo ou porque sentem que não têm liberdade para dizer outra coisa. É o exemplo de alguém que cede às investidas do chefe, porque sente que se não fizer, vai perder o emprego ou a promoção.
Só que reduzir o consentimento à presença do “não” também é perigoso. Porque
não consegue abarcar diversas situações em que o “não” está ausente e, ainda assim, o
consentimento não foi dado. Como quando alguém está dormindo, medicado ou alcoolizado, por exemplo. O caso da francesa Gisèle Pelicot é uma prova disso. Por anos, ela foi violentada sexualmente pelo marido e conhecidos dele enquanto estava inconsciente. Não houve o “não”, mas tão pouco foi consentido. No Brasil, esse tipo de situação é previsto no Código Penal Brasileiro e é considerado crime.
Desigualdades de poder também podem impedir ou dificultar que alguém expresse uma resposta negativa. Como no caso em que uma aluna é assediada e se sente compelida a sair com o professor de seu curso para não perder nota ou ser reprovada.
Então o consentimento não existe?
Segundo as autoras do livro “Precisamos falar de consentimento” , ele pode existir. Só que sem considerar as desigualdades e as circunstâncias diferentes que limitam a autonomia e as ações de uma pessoa, a ideia fica vazia. Então é preciso falar de consentimento, mas entendendo a complexidade disso.
Não dá para dizer que todo mundo é capaz de compreender os próprios desejos e se comunicar de forma clara. Nem dá para supor que a ideia de consentimento é o que vai nos proteger de todas as desigualdades e violências. Devemos ir além dele, sabendo que sexo e sexualidade, além de fonte de realização e prazer, são atravessados por vergonha e poder. Reconhecer isso faz com que o consentimento seja só o começo de uma conversa longa, não o fim.
Chamar homens para essa conversa
Os homens precisam ser chamados para essa conversa. Como lembram as autoras, associar o consentimento a uma conversa que envolve predominantemente mulheres é algo baseado em uma percepção de gênero que coloca homens como aqueles que tomam a iniciativa e mulheres como as que concedem ou negam consentimento.
Essa visão pressupõe erroneamente uma série de questões que devem ser refutadas: 1) que nos caso de violências sexuais, vítimas são sempre mulheres e agressores são sempre homens; 2) que homens e meninos não podem ser vítimas de violência sexual; 3) que as relações sexuais se dão apenas entre homens e mulheres, ignorando as interações eróticas entre pessoas do mesmo gênero.”
Essas percepções naturalizam a ideia de que a iniciativa sexual cabe aos homens, colocando sobre as mulheres o fardo de evitar a violência sexual, “perpetuando a imagem da sexualidade das mulheres como algo frágil e que precisa ser protegido, ao passo que a sexualidade masculina seria uma espécie de força natural destrutiva que tem que ser domada e controlada”, provocam as autoras.