Rodrigo Hilbert é um #HomãoDaPorra, decretaram as redes sociais. Ele está nos padrões de beleza, é bom pai, cozinha bem (e limpa a sujeira depois). Mas elogiar um homem por, como todas nós sabemos, “não fazer mais que sua obrigação” ajuda ou atrapalha o feminismo?
Especialistas ouvidas pela Revista AzMina opinam: da porta pra fora, a luta contra o machismo é coletiva e política. Mas, dentro de casa, a neurociência e a pedagogia podem nos ajudar a mudar o comportamento opressor de um amigo, irmão, pai ou parceiro. Ou pelo menos tentar.
Neurociência, pedagogia e psicologia têm muito a dizer sobre o assunto. Cada área com uma perspectiva diferente e um tanto de discordância interna que está longe de atingir um consenso.
Afinal, se somos animais, temos que entender como o cérebro modela novos comportamentos. Mas se somos racionais, temos que refletir sobre escolhas e respeito. E se vivemos em sociedade, é preciso pensar em ação coletiva – e política. Ou seja, a hashtag pode abrir uma discussão muito mais complexa do que você imagina.
Comecemos pelo cérebro
Nas últimas décadas, estudos com tomografias e raios-X levaram muitos neurocientistas a concluir que reforço positivo – combinado com críticas firmes e respeitosas – podem ajudar a mudar o comportamento de adultos.
“A ciência já mais que comprovou, com estudos empíricos, que o reforço positivo é a maneira mais eficiente de ensinar novos comportamentos e conseguir transformações de longo prazo em crianças e adultos”, afirma Lídia Weber, professora associada do Departamentos de Psicologia da Universidade Federal do Paraná e autora de 11 livros sobre educação. “Ele leva mais tempo, mas gera mudanças mais duradouras e não traz consequências negativas.”
Por que isso ocorre? Segundo Lídia, é porque o nosso cérebro é modelado pelo elogio. Ou seja: toda vez que um homem age de forma não machista e é reconhecido por isso, seu cérebro é “programado” a continuar agindo daquela maneira.
Esse mecanismo foi dissecado pelo médico Ramon M. Consenza quando escreveu o livro “Neurociência e Educação”, no qual elenca as principais descobertas científicas sobre nossa mente e como elas podem ser usadas por educadores. “Nós temos um circuito cerebral que detecta quando coisas agradáveis acontecem ou estão prestes a acontecer, ele se chama circuito da recompensa”, explica ele. “Esse sistema ativa a produção de dopamina, o hormônio do prazer. E experimentos nos mostram que a dopamina facilita a atividade de diversas áreas do cérebro e acelera o processo de aprendizagem.”
Parece complicado? Ajuda entender que nenhum dos nossos comportamentos surge do nada, todos eles são moldados por estímulos dos nossos pais, familiares, amigos e educadores. E nosso cérebro é treinado para buscar o prazer: quando associamos alguma atitude com a sensação de alegria e compensação, o nosso inconsciente tende a nos guiar em direção a esses comportamentos. A arte abaixo ilustra como isso acontece:
Esses estudos fizeram com que a sanção caísse em descrédito como método educativo. “A punição pode até inibir alguns tipos de comportamentos imediatos, mas causa um contracontrole: quando alguém te agride, verbal ou fisicamente, você entende, subconscientemente, que deve produzir a mesma atitude de agressão em direção ao outro”, esclarece a psicóloga Lídia.
Ela exemplifica com o caso de uma criança que tenta pegar um chocolate antes do almoço e toma um tapa na mão. Ela deixará, naquele momento, de comer chocolates, mas vai entender que a agressão é uma forma válida de opor-se àquilo com o que ela não concorda. Além disso, ela não terá aprendido que não deve comer chocolates antes do almoço, mas que deve evitar a punição. Ou seja: passará a comportar-se assim sempre que puder fazê-lo escondida e sair impune.
O mesmo, segundo Weber, acontece com homens adultos que são apenas punidos por comportamentos inadequados: sua tendência é continuar sendo machistas em âmbitos privados, como grupos de Whatsapp ou com mulheres menos críticas. Ao passo que, ao serem estimulados e elogiados, tendem a mudar de comportamento mesmo quando o elogio não está disponível.
Um estudo publicado na Revista Neuroimage, em 2014, também mostrou que, diante da perspectiva de recompensas, pessoas adultas tendem a se esforçar mais nas tarefas. Usando a ressonância magnética, os pesquisadores monitoraram a atividade cerebral de 50 voluntários enquanto aumentavam exponencialmente as expectativas de recompensas para determinadas tarefas. Quanto mais expectativa de louros eram dadas aos participantes, maior era a ativação de seus circuitos de recompensa cerebrais e maior seu empenho.
Aplicando-se ao caso de educar para equidade: segundo esta linha de raciocínio, se o homem machista começasse a associar o comportamento respeitoso e justo com as mulheres a uma sensação de prazer e recompensa, seu inconsciente iria guiá-lo automaticamente a se esforçar mais ainda. Com o tempo, de acordo com esses estudos, o comportamento seria impregnado tão fundo em sua personalidade que ele se portaria assim mesmo quando não estiver sendo observado por ninguém, já que seu próprio organismo lhe dará a recompensa hormonal produzida por um elogio.
A força da crítica
Dezenas de estudos, por outro lado, também ensinaram os cientistas que a crítica é poderosa – desde que feita de forma eficiente. Uma pesquisa feita pela Leiden University Institute for Psychological Research, da Holanda, por exemplo, mostrou que, a partir dos 9 anos de idade, o cérebro dos homens consegue absorver conhecimentos a partir de críticas – e se transformar a partir delas.
“Um pouco de estresse é muito necessário para o aprendizado”, defende o médico Consenza. “Quando estamos em uma situação emocional, do ponto de vista neurofisiológico, o cérebro fica mais alerta, começamos a prestar mais atenção, a adrenalina faz o coração bater mais forte e deixa o corpo mais mobilizado. É assim que desenvolvemos nossa capacidade de autocrítica e nossas habilidades sociais.”
Vamos imaginar a situação de um marido que não lava a louça, deixando a tarefa sempre pra esposa. Quando a esposa diz a ele que aquilo não é justo e argumenta os porquês, o marido ficará um pouco tenso, seu cérebro começará a secretar o cortisol e ele ficará mais alerta, o que aumenta as chances dele se lembrar da bronca mais tarde.
No entanto, afirma Consenza, se a crítica é constante, extrapolada pra fora daquela situação diminuindo o valor da pessoa (“você é uma pessoa horrível, não é um bom marido”), ou usa palavras muito ofensivas, o circuito da crítica sai do controle e entra num círculo vicioso que prejudica o aprendizado do novo comportamento.
“Quando as críticas geram uma situação de estresse, a produção de cortisol (hormônio do estresse) se torna excessiva pode até matar neurônios do hipocampo, região essencial para a memória e o aprendizado. Por isso é importante a aprender a fazer críticas construtivas”, avalia Consenza. A ilustração abaixo explica o mecanismo descrito pelo médico.
A recomendação de Consenza para mães que querem mudar o comportamento de seus filhos ou mulheres que querem reeducar seus companheiros é criticar o comportamento, mais do que a pessoa. Além disso, racionalizar as razões pelas quais aquilo não é legal e sugerir alternativas de comportamento e outras visões de mundo.
Mas também não somos ratinhos de laboratório
Mas pensar que podemos mudar o comportamento de alguém somente sob a luz da neurociência é esquecer que nós, seres humanos, vamos para muito, muito além biologia. “Descrever a mudança de um comportamento como decorrência da atitude de outra pessoa, como em uma relação obrigatória de causa e efeito, é reducionista”, explica a psicóloga fenomenóloga Priscilla Glaser.
“Não é uma pessoa que muda, modela ou treina a outra. Como psicóloga fenomenóloga, entendo que os processos de mudança em uma pessoa se dão a partir de reflexões, que podem ser promovidas por alguém – mas não causadas por alguém. Só há mudança se houver uma mínima abertura do outro para colocar em questão suas verdades e conceitos sedimentados de mundo”, ressalva Priscilla.
Sob este pensamento crítico, Catarina Santos, professora da faculdade de educação da Universidade de Brasília (UnB), avalia que o reforço positivo pode até funcionar no âmbito privado, mas é danoso quando extrapolado para toda a sociedade.
“A construção do estereótipo do ‘homem perfeito’ termina reforçando o machismo em vez de ajudar”, defende. “Em vez de naturalizarmos esse comportamento dizendo que o que Rodrigo Hilbert faz é o que todo homem tem que fazer, a gente premia como se fosse algo excepcional. Estamos dizendo que nem todo mundo vai chegar a ser um Rodrigo Hilbert.” Ela argumenta, ainda, que combater o machismo não se trata de uma questão apenas individual, mas política.
Em casa, a educadora Milena Carrasso oferece uma solução conciliatória: ela compara o homem que lava a louça com a criança que faz sua lição de casa: “Você não vira pra criança e diz ‘que merda, você não fez mais do que a sua obrigação’, mas ‘que bom que você fez suas obrigações. Lembre-se: essas são suas obrigações; cumprir obrigações é um exercício trabalhoso e necessário, mas você precisa fazê-lo pra ser digno do papel que ocupa'”.
Mas atenção: é extremamente importante não confundir recompensa com suborno em nenhum caso, alerta Milena. A busca do elogio não pode ser condição para que o homem se comporte de maneira correta e ele não deve sentir-se no direito de reclamar quando não é reconhecido por fazer o mínimo. “É como dizer para a criança ‘se você parar de gritar eu compro o chocolate que você quer’. Isso é ruim pois você estará, ao contrário do que parece, recompensando a existência do comportamento inadequado inicial. Neste caso, aumentará as chances dele se repetir”, esclarece.
Ou seja: elogio precisa de moderação e não pode, nunca, virar obrigação da mulher.
Diálogo
Intuitivamente, a ativista feminista Manoela Miklos utilizou com seu pai uma estratégia de combate ao machismo apoiada por muitos psicólogos, pedagogos, neurocientistas e até teóricas do feminismo: dialogar, ouvir e apontar os erros. Ela resolveu se armar de palavras e paciência.
Principalmente porque ela sabe que se o pai dela, o músico Paulo Miklos, desconstruir seus preconceitos, pode influenciar milhares de pessoas com suas canções. “Um debate que temos, por exemplo, diz respeito ao trabalho dele, suas composições. Como esse lugar de musa que sempre foi supostamente nobre e desejado pode ser uma prisão machista?”, conta ela. “Enfim, são muitos papos de desconstrução de uma masculinidade dada e de descobrimento de novas sensibilidades – sempre juntos, cúmplices”, conta.
A educadora Milena apoia este receituário. “Devemos ser generosas com os homens como professores devem ser com seus alunos porque, como dizia Paulo Freire, ‘não existe educação sem generosidade'”, opina. “O erro deve ser sinalizado com bondade. Deixemos o ódio a quem não se propôs a educar. Nós, mulheres, podemos nos propor, sem problemas ou vergonha, a esse papel de educadoras.”
Milena não é a única a pensar assim: a prestigiada feminista negra americana Bell Hooks defende, em seu livro “Feminism is for Everybody” (Feminismo é para todos, ainda não traduzido para o português) que nós adotemos uma pedagogia feminista que dê espaço para o diálogo com os homens.
“Garotos precisam de uma autoestima saudável. Eles precisam de amor. E uma política feminista sábia e amável pode oferecer a única estrutura que salvará as suas vidas”, escreve Bell Hooks.
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Limites
Estudar técnicas de pedagogia, diplomacia e neurociência para reeducar homens machistas, no entanto, não é o mesmo que dizer que a estratégia vale para qualquer situação ou que as mulheres são obrigadaa a fazê-lo. O principal limite, alertam especialistas, é a segurança da mulher. E, naturalmente, sua vontade.
“Quando se trata de um companheiro, é preciso analisar se o sujeito está mesmo disposto e aberto à transformação porque, se ele não estiver, a transformação não vai ocorrer – e talvez seja melhor arrumar outro parceiro”, opina a psicóloga Lídia Weber. “Agressões, por exemplo, são muito sérias e não serão resolvidas apenas no diálogo. Nesses casos entra o papel punitivo da lei. E é educativo entender que comportamentos têm consequências e, às vezes, essas consequências são punitivas.”
Descobrir limites para educar para a equidade de gênero permanece uma área de eterno estudo, como são todos os campos da pedagogia. Mas Manoela Miklos atesta que diálogo e críticas bondosas têm funcionado pra ela. “Meu pai me escuta, deixa ecoar e volta pra perguntar mais. E vejo ele super em transformação. Me questionando: ‘Filha, essa letra é muito machista? Me explica por quê?’ Ele está no mundo de outra maneira. Ainda permeado pelos nossos males, claro: machismo, racismo, classismo. Mas consciente disso tudo, questionando isso tudo. E colocando a voz dele a serviço das lutas certas.”
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