Desde o fim de 2023, a sociedade tem se indignado com o fechamento do serviço de aborto legal do Hospital Municipal e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, localizado na zona norte de São Paulo. A medida é parte de um processo de perseguição ao maior serviço de aborto legal da capital paulista. Isso ficou evidente após as declarações do próprio secretário de saúde do município de que a pasta, juntamente com o Conselho Regional de Medicina (Cremesp), copiou prontuários sigilosos de pacientes para investigar supostos indícios de “irregularidades”.
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Antes mesmo do fechamento do serviço no Hospital Cachoeirinha, os relatos dão conta que um clima de suspeita e apreensão circulava entre as/os profissionais, motivado por visitas injustificadas de funcionários da prefeitura e de pessoas ligadas ao Cremesp.
Além da ofensiva no Cachoeirinha, se espalha pelo Brasil uma verdadeira cruzada contra os serviços de aborto legal e servidoras/es que atuam na garantia do acesso à interrupção da gestação nas situações previstas por lei – são elas: gravidez resultante de estupro, anencefalia fetal e risco de vida para a pessoa gestante.
A reportagem d’AzMina procurou outras unidades em regiões do país que oferecem esse tipo de atendimento e verificou que médicas/os e enfermeiras/os estão com medo de falar, se sentem bastante pressionadas/os, temem retaliações e mais suspensões de serviços no país. Algumas equipes chegam a ser ameaçadas por seus gestores.
Barreira maior em gestações avançadas
A unidade hospitalar paulistana era a única do estado e uma das poucas no Brasil a realizar o aborto legal em casos de gestações avançadas, acima de 22 semanas. A especialização da equipe nos últimos anos permitiu que o serviço do Cachoeirinha se tornasse referência nessa área. Por se tratar de um Hospital Escola, possui protocolos e práticas baseadas nas melhores técnicas de assistência e nas evidências científicas mais atualizadas.
A existência de poucos serviços que realizam abortos em gestações avançadas resulta em sobrecarga e estigmatização das equipes que garantem esse direito. Os casos de gravidez mais avançada são encaminhados para estados como São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.
“Há um entendimento generalizado nos serviços de referência de que só é possível realizar o procedimento até 20-22 semanas”, explica Camila Daltoé, assessora jurídica do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública do Paraná. Segundo ela, a maior parte das meninas e mulheres que não são acolhidas no estado do Paraná, devido à idade gestacional, são vítimas de violência sexual. São pessoas que, muitas vezes, por não reconhecerem a própria violência, acabam descobrindo a gravidez semanas depois.
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No Paraná, os serviços de aborto legal atendem, via de regra, até a 20ª semana (o Hospital das Clínicas da UFPR atende, em alguns casos, até 22 semanas, mediante análise). Casos de gestações mais avançadas são enviados para serviços de outros estados. Antônia*, moradora da capital Curitiba, não conseguiu acesso ao aborto previsto em lei em seu próprio estado por estar com 29 semanas de gestação.
“A gente tenta a formalização via Tratamento Fora do Domicílio (TFD) pela Secretaria de Saúde, mas havendo urgência e não tendo resposta a tempo, dialogamos com o Projeto Vivas”, afirma Camila. O Vivas é uma Organização Não Governamental (ONG) que, desde 2020, acolhe e encaminha pessoas em busca do aborto legal no país e encontram barreiras para a efetivação do direito.
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Independência médica x cargos políticos
“Os atendimentos de gravidez avançada são muito poucos em relação aos outros, mas isso ganha uma dimensão enorme dentro dos serviços, tensionando muito”, avalia Greice Menezes, médica e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Greice ressalta que esses serviços só funcionam porque existem equipes que são comprometidas e se empenham em garantir o direito das mulheres, apesar das pressões.
Um exemplo é o serviço de aborto legal do Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife-PE, o primeiro no Brasil a realizar aborto em gestações superiores a 22 semanas em caso de violência sexual.
Por estar vinculado à Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado e fazer parte da Universidade Estadual de Pernambuco (UPE), a seleção dos gestores ocorre a partir de editais. Nos hospitais universitários, eles não são, portanto, cargo político-partidário, indicação do governo ou da prefeitura, como é o caso do Cachoeirinha em São Paulo. “Isso protege e permite a continuidade do trabalho, é o que nos dá independência”, explica Olímpio Moraes, professor e coordenador médico do Cisam.
Olímpio afirma que não há limite de idade gestacional para que o procedimento seja feito em segurança, dentro da lei. Ele acrescenta que o SUS é universal e sem fronteiras, por isso o Cisam recebe pessoas de várias cidades e estados. “Todo hospital público deve atender, independentemente do local de moradia da paciente”, destaca o obstetra que há anos atua para fazer valer os direitos reprodutivos.
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Para Tatiana Bias Fortes, coordenadora do Nudem da Defensoria Pública de São Paulo, os gestores públicos não podem colocar barreiras de acesso ao aborto legal. “Entendemos que não poderia haver normas internas a impedir um direito garantido por lei”, esclarece. Os obstáculos impostos configuram, portanto, uma ilegalidade. Ainda assim, eles permanecem.
Regras só para casos de violência sexual
O Hospital Materno Infantil DR. Antônio Lisboa (HMIB), no Distrito Federal (DF), que tem o Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei hospital, estabelece orientações explícitas para não fazer o procedimento em gestações com mais de 22 semanas, especificamente nos casos de violência sexual. A unidade determina esse limite baseada na Norma Técnica “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes” – do Ministério da Saúde (MS), publicada em 2012.
A normativa, no entanto, não serve para outras situações de aborto previsto em lei. Conforme a própria Secretaria de Saúde do DF: “para casos de anencefalia, não há prazo para interrupção; casos de malformados, em geral, é até 24 semanas. Neste último caso, se estiver além desse prazo, é preciso passar pelo núcleo Pró-vida do Ministério Público, responsável pelo acesso à saúde.”
Vale lembrar que uma norma técnica é uma orientação de saúde e não se caracteriza como restrição legal, já que o Código Penal não impõe limites de semanas para o aborto em nenhuma das situações previstas em lei. Mas muitos serviços de aborto legal seguem essa normativa de 12 anos atrás, e o Ministério da Saúde foi provocado para alterá-la. O órgão nos informou, em nota, que uma versão atualizada está sendo revisada pelos técnicos da pasta. A assessoria de imprensa do MS não soube precisar a data, mas disse à reportagem que havia um esforço para que fosse ainda no mês de janeiro, o que não ocorreu.
“É importante um posicionamento claro do Ministério da Saúde para dar retaguarda aos estados e municípios quanto àquilo que é previsto em lei”, destacou Gabriela Rondon, pesquisadora e advogada do Anis Instituto de Bioética. É obrigação dos gestores do SUS prover, aprimorar e ampliar o cuidado. “Hoje, a oferta de serviço é totalmente incompatível com a demanda”, complementa Gabriela.
As/os servidoras/es do hospital de Brasília são, hoje, obrigadas/os a negar acolhimento e deixar as vítimas de violência sexual com gestações acima de 22 semanas à deriva. O servidor público teria, na verdade, a obrigação de garantir o acesso e o direito à saúde, já que o Código de Ética Médica determina usar as normativas e as evidências científicas mais atuais. Mas isso não pode ser posto em prática quando a instituição segue uma diretriz definida a partir de uma decisão política.
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“Nenhuma mulher chega a 22, 24, 29 semanas (de gravidez) porque quer. É muito menos responsabilidade delas e muito mais uma expressão da falência do Estado e das políticas públicas que deveriam protegê-las”, avalia a pesquisadora baiana Greice Menezes. Ela complementa que muitas dessas mulheres não tiveram informação no tempo oportuno e/ou enfrentaram barreiras de acesso, “por todo o estigma em torno da criminalização do aborto.”
A objeção de consciência
Além das barreiras políticas e institucionais, o aborto legal muitas vezes se depara com outro obstáculo: a objeção de consciência de profissionais da saúde. Esse é um conceito presente no Código de Ética da Medicina, que concede ao profissional a autonomia para se ausentar de procedimentos que firam suas ideologias. Porém, a saúde do paciente não pode ser negligenciada.
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Em Belém, o programa de abortamento legal da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará tem sido alvo de denúncias. Este ano, após realizar todas as consultas e ter a data do procedimento agendado, uma mulher teve que buscar o Ministério Público para garantir o direito. Isso porque, no dia do procedimento, o hospital informou que desmarcaria todos os agendamentos, pois a anestesista havia alegado objeção de consciência.
“Quando uma paciente informou ao serviço que iria acionar o Ministério Público, tudo mudou, e ela conseguiu acessar o direito”, conta Juliana Reis, fundadora e coordenadora da operação Milhas pela Vida das Mulheres, fundada em 2019.
Um trabalho de mestrado mostrou os problemas e os esforços de profissionais do único serviço de aborto legal do Pará diante do fato de que 95% da equipe médica alega objeção de consciência e se nega a realizar o procedimento.
Esperança nos órgãos de Justiça
Em cada grande município e estado, deveria ter ao menos um serviço que disponibilize o aborto legal (sem limite de idade gestacional) para que a distância não seja um entrave ao atendimento em saúde. “Quanto mais serviços, melhor, porque a gente sabe o custo emocional, a dificuldade de dispor tempo e de condições materiais para se deslocar”, indica Tatiana do Nudem-SP.
O entendimento do direito à saúde tem motivado ações no âmbito do judiciário. No Amazonas, em 18 de janeiro, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento administrativo para o “monitoramento das políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva da mulher” e, entre elas, a garantia do direito ao aborto legal no estado.
Em São Paulo, a Justiça já foi provocada três vezes para que o Hospital Vila Nova Cachoeirinha retomasse o serviço de aborto legal, mas a instituição seguiu descumprindo as decisões judiciais. O gestor e a Secretaria de Saúde municipal não comprovaram a inviabilidade da reabertura do serviço. No dia 5 de fevereiro, uma nova decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou a liminar que obrigava a prefeitura a voltar a oferecer o aborto legal no Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha.
Em uma Nota de Repúdio, a Rede Médica pelo Direito de Decidir declarou que há uma “tentativa de desviar o foco do problema, que é a flagrante desassistência a esse constitucional direito reprodutivo”. A entidade salienta que esta é uma excelente oportunidade para o Ministério Publico investigar gestores que não cumprem suas obrigações legais.
No dia 24 de janeiro de 2024, a sociedade civil realizou um ato público em frente à Prefeitura de São Paulo para exigir a volta do serviço. Uma petição online recolheu assinaturas com esse propósito e foi entregue à gestão municipal na data.
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Justificativa contraditória
Ao deixar de obedecer às ordens judiciais no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, a prefeitura paulista justifica, entre outras coisas, que não tem havido procura pelo serviço de aborto legal na unidade. A informação contradiz as últimas denúncias de que mais de 20 meninas e mulheres ficaram sem atendimento desde dezembro e precisaram buscar seus direitos em outros estados.
Dos cinco hospitais que são referência para aborto legal no município de São Paulo, o Cachoeirinha foi responsável por 70% de todos os procedimentos entre 2017 e 2023 no estado inteiro. Os números estão registrados no Sistema de Informações Hospitalares do governo federal (SIH/DataSus).
Como era o único serviço da cidade que realizava interrupção de gestações avançadas, o hospital recebia todos os casos de risco de vida e anencefalia fetal – situações em que o procedimento também ocorre, geralmente, mais tarde, pois dependem de diagnóstico e laudos médicos.
Em novembro de 2023, antes do serviço no Cachoeirinha fechar, duas meninas, de 12 e 15 anos, não haviam conseguido realizar o aborto legal na unidade. Elas estavam com gestações acima de 22 semanas e só conseguiram acessar o direito com ajuda do Projeto Vivas.
*nome fictício para preservar a vítima
Edição: Joana Suarez
Atualizações
- 7 de fevereiro de 2024 14:00
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Errata 1: o texto foi atualizado para incluir a última decisão judicial de 5 de fevereiro sobre o Hospital Vila Nova Cachoeirinha.
Errata 2: Atualizamos informações sobre um hospital citado na matéria.