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“Feminismo não é Disneylândia”, diz Heloisa Buarque de Hollanda

Aos 80 anos, escritora publica série de livros sobre teoria feminista para formar nova geração

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(Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras)

Aos 80 anos, a escritora Heloisa Buarque de Hollanda é memória viva da história do feminismo brasileiro. Após o declínio que o movimento viveu na década de 90, vê com entusiasmo a efervescência que o feminismo está vivendo hoje no Brasil e está obstinada em documentar essa história e a contribuir com a formação da nova geração de feministas. “As filhas nos traíram, mas as netas no resgataram”, diz. 

Professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela transformou o ativismo que conheceu nos anos 1980 em pesquisas e debates sobre relações de gênero, raça, poesia e culturas marginalizadas, em uma nova versão de militância. 

Em menos de dois anos, escreveu quatro livros sobre teorias feministas e a diversidade de pensamentos do feminismo brasileiro: Explosão Feminista; Pensamento Feminista – Conceitos Fundamentais; Pensamento Feminista Brasileiro: formação e contexto; e Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais (o feminismo decolonial questiona padrões eurocêntricos da colonização). “Essa geração nova tem um gás e uma consciência incrível já adquirida, e  precisa de repertório”, afirma Heloisa. 

Em entrevista à Revista AzMina, Heloísa fala sobre as suas últimas publicações, as impressões sobre o feminismo atual e a missão que assumiu de compartilhar e registrar tudo o que viveu e sabe sobre o movimento feminista brasileiro para as próximas gerações. Confira os principais trechos dessa conversa: 

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Revista AzMina: Como você pratica o feminismo hoje? 

Heloisa: No momento que eu estou, com essa idade, o meu feminismo é uma formação continuada e enlouquecida. Quem passar na minha frente vai levar alguma coisa ou vai ouvir alguma coisa. É o que eu posso dar. Virou um projeto político. É muito importante divulgar a história, principalmente como essa geração nova, que tem um gás e uma consciência incrível já adquirida, e que precisa de repertório.

AzMina: Você publicou vários livros em sequência sobre feminismo. O que te motivou a escrever sobre o tema? 

Heloisa: O que eu estou fazendo é uma militância. Eu publiquei o “Explosão Feminista” e tive muito contato com as novas gerações. Achei que tinha que compartilhar o que eu sabia com elas. Fiz o primeiro livro, que traz os conceitos fundamentais. Depois achei que tinha que contar a história do pensamento feminista brasileiro. Agora nasceu o sobre feminismo decolonial. O próximo já está pronto com a editora e se chama “Sexualidades no Sul Global”, que é a questão da sexualidade na perspectiva decolonial também. É um trabalho de compartilhar o saber, de formação mesmo, de dar munição para a garotada. 

AzMina: Este ano você lançou o “Pensamento feminista hoje: Perspectivas decoloniais”. O que você traz neste livro? 

Heloisa: Ele tem uma relação com o primeiro, de conceitos fundamentais. É a perspectiva decolonial. Nos países latino americanos, nos países do sul global, Índia, Brasil, América Latina no geral, você não pode olhar gênero da mesma forma que você vê nos países centrais da Europa, nos Estados Unidos. A gente tem uma sociedade que coloca novas questões. 

A importância do decolonial seria exatamente localizar o que seria a mulher brasileira com uma perspectiva local. O decolonial é depois da colonização. A colonização foi feita acabando com povos originários e tradicionais, como os indígenas e escravizados. Essas são culturas muito fortes, muito poderosas e foram caladas. Veio a catequese e acabou com as famílias, com as comunidades que existiam antes dos colonizadores. Precisamos descolonizar as nossas cabeças, tentar propor coisas novas, com a nossa perspectiva.

(Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras)
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AzMina: Na pesquisa para o seu último livro, você aprendeu algo que ainda não conhecia? 

Heloisa: Sim, sobre a questão queer. A discussão sobre sexualidade veio com uma força tão grande dentro do decolonial que eu resolvi escrever um outro livro sobre o assunto, que é esse que está na editora. Ele fala sobre como o debate queer chega no Brasil. No primeiro momento ele chega muito higiênico, uma coisa europeia, uma moda. Depois você começa a ver, com uma perspectiva decolonial, que a questão queer não é só sobre sexualidade, é uma questão social, uma vez que o preconceito gera a morte dessas pessoas no país. 

A outra surpresa é ver que a gente ainda não tem uma massa crítica brasileira. O nosso decolonial é totalmente latino-americano. É melhor do que o europeu, pois são nossos irmãos. Mas, ao mesmo tempo, o que ficou de mais importante na colonização nos países latinos foram as populações indígenas nos países latinos. México, Peru, Uruguai. Nesses países, a força da cultura originária é mais cultura indígena, e no Brasil é a cultura negra. É a hora da gente começar a produzir tanto em cima da colonização brasileira quanto da cultura negra com mais força. 

AzMina: O Explosão Feminista foi criticado por trazer um artigo sobre feminismo radical, que é considerado transfóbico. Como você vê essas críticas? 

Heloisa: O livro tem capítulos que eu escrevi em colaboração com outras autoras e capítulos que eu dei total liberdade para as autoras escreverem a partir de seu lugar de fala, que é o caso dos capítulos sobre as diversas vertentes do feminismo. Eu não concordo com o artigo sobre feminismo radical, mas eu incluí aquele texto porque é importante, muita gente pensa assim. Feminismo não é uma Disneylândia. Tem correntes contra e a favor, tem dissidências, tem várias posições ali dentro. Eu achei importante mostrar as questões todas, mas eu não preciso concordar com elas. 

Em um livro que você reúne feminismo branco, feminismo negro, feminismo indígena, feminismo lésbico, feminismo trans, feminismo radical, tudo isso junto, eu achei que todas iriam reclamar, porque tem muito antagonismo aí, mas no fim só deu problema com a Eloísa [Samy, autora do artigo sobre feminismo radical].  

AzMina: Com essas publicações recentes, tentando inspirar mulheres que estão começando, como você vê a geração atual de feministas?

Heloisa: É o melhor susto que uma feminista antiga pode ter. Quando foi nos anos 90, no começo dos anos 2000, teve um declínio real do feminismo. A geração dos anos 90 não era feminista e não se interessava por isso. Talvez fosse o momento econômico, mais neoliberal, não sei. Mas de repente com a internet explodiu essa quarta onda do feminismo. As filhas nos traíram, mas as netas no resgataram.  

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AzMina: E no que você está trabalhando hoje?

Heloisa: Eu estou escrevendo um livro que vai se chamar “Nasce o feminismo”. É a história do começo do feminismo, mas são as memórias mesmo. Eu estou fazendo com a Branca Moreira Alves e a Jaqueline Pitanguy. Elas participaram da Constituinte, foram políticas e vão fazer a parte do ativismo. Eu vou fazer a parte da cultura. Cinema Novo, o que as mulheres estavam fazendo, a Rita Lee aparecendo, essa geração toda que não era feminista ainda, mas que teve o impacto óbvio do feminismo. 

Se alguém não contar, ninguém vai saber como foi o feminismo nos anos 70. As mulheres faziam passeatas, peças estranhíssimas, teve o lobby do batom da Constituinte, quando as mulheres foram todas de batom brigar pelos seus direitos. Tem muita coisa que a gente tem que contar porque não tem registro.

AzMina: É impressionante o quanto a senhora é produtiva escrevendo tantos livros em pouco tempo.

Heloisa: É medo de morrer. Eu acho que eu sou Sherazade, enquanto eu estiver contando, eu não morro [Sherazade é lendária rainha narradora dos contos “As Mil e Uma Noites”, que enquanto está contando a história não é morta pelo marido]. Tô brincando. Eu sempre fui muito militante na Universidade, em todo lugar, mas agora a minha militância é essa. É registrar ao máximo, contar o máximo,  dar o máximo possível de informação para as meninas que estão vindo aí, para as minhas netas. 

AzMina: É uma oportunidade de ser eterna?

Heloisa: É saber para as outras. A gente está escrevendo porque a gente viu a história acontecer. E essa história ainda não foi bem contada. Agora a gente sabe tudo, por causa da internet, mas no meu tempo não era assim. Eu estava na ativa e quando a Jaqueline me conta “sabe quando teve uma passeata não sei aonde, teve uma briga no sindicato”, eu não sabia. A comunicação era precária, a gente não têm registro oficiais e de imprensa de nada, mas nós [as feministas] temos fotos, temos a memória. Isso é precioso, isso tem que ir pra rua. Isso é história nossa. 

AzMina: Você se envolveu com projetos de raça e gênero, como o Projeto Abolição,  dedicado ao estudo de questões raciais na arte brasileira nos anos 80. Como você vê o desenvolvimento desses debates ao longo dos anos? 

Heloisa: O Abolição foi um projeto para ver qual era o estado da arte no debate sobre raça no Brasil. Eu queria tomar a temperatura, porque existiam muito eventos e eu queria ver como essa questão estava batendo no Brasil naquele momento. O cruzamento de raça e gênero é inevitável. É um debate muito importante porque esse é um diferencial grande do Brasil.

Sempre houve um feminismo branco que calou a boca do negro. No nosso caso é mais grave porque a população de mulheres negras no Brasil é gigantesca e nós ainda temos a instituição da empregada doméstica, a população negra em segmentos econômicos mais pobres. Você tem uma relação de mulheres brancas e mulheres negras muito violenta. Esse assunto precisa ser mais pautado no Brasil, mais do que nos outros países, porque atravessa o nosso cotidiano.

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AzMina: O que você deseja para as mulheres neste 8 de Março? 

Heloisa: Eu desejo que elas desejem o que quiserem ser, já é de bom tamanho. É  difícil ser mulher e ser o que você quer ser, estar onde você quer estar. Nesse momento nós temos problemas políticos sérios. As verbas para educação e cultura estão sendo cortadas. Mas os passos que foram dados neste início de século não têm volta. Pode ser que a gente não consiga fazer filme, mas continuar pensando e agindo, a gente vai.

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