O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) chocou o Brasil pela brutalidade do crime e por ter representado um ataque direto a muitos símbolos: mulher, negra, lésbica e favelada. Mais do que uma pessoa, as balas feriram grupos e ideais. Um amigo de longa data dela, o geógrafo Lourenço Cezar, chegou a dizer à Ponte que a pessoa que disparou contra ela deveria ter conhecimentos de ciências sociais, já que, com os tiros, conseguiu atingir inúmeras pessoas de uma única vez.
A vereadora e o motorista Anderson Gomes foram assassinados na noite do dia 14 de março deste ano, logo depois que ela saiu de um evento em que discutia negritude, representatividade e feminismo. Os disparos da submetralhadora 9mm, segundo a investigação, tinham alvo certo: Marielle. Mas acabaram atingindo Anderson. Colegas do PSOL na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro se comprometeram a manter viva a luta dela. Tanto que no dia 2/5, após negociação com a presidência da Casa, a bancada conseguiu aprovar cinco de pelo menos sete projetos de lei de autoria dela que tinham ficado por serem votados.
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Mas há outro efeito, esse de médio e longo prazo, a partir da trágica morte de Marielle. Inspiradas pela história da vereadora carioca, mulheres negras decidiram entrar para a vida política como forma de levar adiante o legado de luta deixado por ela. É o caso de Leticia Gabriella da Cruz Silva, de 22 anos, técnica em administração de empresas e graduanda em Direito e, agora, possível candidata de primeira viagem.
“Nunca fui filiada a nenhum partido, minhas ações políticas vêm por conta da atuação no movimento social”, explica. Segundo ela, a militância foi importante para ela se reconhecer na sociedade. “A minha cor, gênero e também a condição social me posicionam como um ser político desde sempre”, pontua. Com sua candidatura ainda em construção, Leticia, moradora do Jardim Fernandes, zona leste de São Paulo, afirma que será candidata a vereadora por São Paulo em 2020, mas ainda está avaliando por qual partido.
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Letícia conta que, de imediato, uma inquietação surgiu a partir da notícia da execução de Marielle: a ideia do “poderia ter sido eu”. “Uma rápida reflexão me fez perceber quantas coisas tínhamos em comum: mulher, preta, periférica e que iniciou a militância pelos direitos humanos”, conta. Depois de pesquisar sobre as possíveis motivações para o crime, a jovem paulista diz que “bateu um sentimento forte de indignação e injustiça, de que não poderia ficar por aquilo.” Mas, segundo ela, o que foi fundamental para transformar a indignação em candidatura foi quando se deparou com a frase da vereadora que viralizou depois da morte: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
“Foi o momento do luto a luta, em que eu pesei a pauta da nossa luta, da minha trajetória, uma luta de séculos da população negra”, diz Leticia. “Pensei comigo, tem que ser agora, chegou o momento de lutar por justiça, de evitar que outras vozes sejam caladas, que os corpos negros sejam mortos, de lutar por uma política que priorize a pauta negra, de ser protagonista, representativa e não mais ficar nos bastidores”, continua.
A trajetória de Letícia guarda outra curiosa semelhança com a de Marielle. Ela passou pelo pré-vestibular comunitário de um núcleo da ONG Educafro, em 2014, quando começou a militar pelos direitos humanos. Foi nessa época que participou cada vez mais ativamente das discussões para a construção e efetividade de políticas públicas voltadas para a população pobre e negra, ações como as cotas, por exemplo.
Quero muita mulher negra sendo eleita
A deputada estadual veterana Leci Brandão (PCdoB), segunda mulher eleita em 184 anos de Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), considera ótimo que mulheres negras estejam se candidatando para manter vivo o legado da vereadora. “Para mim, ela [Marielle] é uma mártir”, define. Segundo a deputada, é preciso que as mulheres negras saibam que a política também é para elas.
Com a ajuda da internet e das redes sociais, Leci vê a possibilidade de mais pessoas se identificarem com as pautas de Marielle e, assim, se interessarem pela política. “Eu gostaria de parabenizar essas jovens [que vão se candidatar]. Eu quero muita mulher negra sendo eleita nesse ano!”, diz. Leci também confessa que gostaria de ver a arquiteta Mônica Benício, viúva da vereadora, como uma opção nas eleições. “Ela tinha que ser candidata para dar continuidade a essa política da Marielle. É por isso que temos que torcer para que essas jovens tenham resultado positivo na política: para fortalecer a luta que ela criou”, finaliza.
A viúva de Marielle, até o momento, não manifestou pretensões políticas, mas outras mulheres próximas do mandato da vereadora, sim. É o caso de Dani Monteiro, 26 anos, que trabalhava na equipe de assessoria de Marielle, ação que se restringia aos bastidores do mandato. Agora, pela primeira vez, Dani vai dar as caras e tentar um cargo na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) nas eleições deste ano. Junto dela, Mônica Francisco e Renata Souza também anunciaram as candidaturas, outras duas pessoas do mandato a deixarem os bastidores para buscarem um espaço direto na política.
Dani lembra que ouviu falar pelas primeiras vezes do trabalho de Marielle quando ela atuava na Comissão de Direitos Humanos e como assessora de Marcelo Freixo (PSOL). Em 2016, ela entrou para a campanha da então candidata à vereadora por se sentir representada naquela figura. “Uma mulher negra se candidatando e com a pauta política de combate à violência, valorização da vida… Foi quase que amor a primeira vista”, relembra.
Depois disso, a estudante afirma que “entrou de cabeça” na campanha, ajudando na construção da agenda, na rotina de panfletagem e no desenvolvimento do programa para mulheres. Em meio a essa e outras atuações, Dani começou a perceber que a política “não é o espaço só dos homens brancos engravatados que falam certinho.” Para ela, Marielle foi a representação de que precisava. “Infelizmente, ela não está mais aqui para fazer parte disso, mas [a candidatura] era algo que a gente tava construindo juntas”, afirma.
Segundo ela, a candidatura vem “da necessidade de construir um programa para recuperar o Rio da crise, um programa para quem vivencia de fato o estado”. Dani acredita que só com novos agentes públicos, distantes da velha política, isso será possível. “Eu vi na Marielle uma pessoa que poderia ser eu, poderia ser minha mãe, poderia ser alguém comum”, conclui.
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Recentemente, a funkeira MC Carol, de 22 anos, também anunciou que será candidata à deputada estadual pelo Rio de Janeiro. Após o crime contra Marielle e Anderson, a funkeira homenageou a vereadora assassinada com uma música, mas decidiu ir além na luta, iniciada em conversas com a própria Marielle. Porém, a cantora diz que já vinha pensando em uma candidatura em conversas com ela e a vereadora Talíria Petrone (PSOL). Elas foram até a casa de Carol e depois se reencontraram na Câmara. As conversas a incentivaram a “fazer parte da política”.
“A gente falou como é ser uma mulher preta na política. E não é fácil. A gente tem que chegar lá e soltar a voz”, afirma Carol, dizendo que Marielle “não precisava nem abrir a boca.” Segundo ela, a vereadora passava força só com a presença. “Aí eu fiquei: Caraca! Quero ser igual essa mulher.” O partido escolhido para as eleições foi o PCdoB por influência da deputada federal Jandira Feghali: “É o partido que mais me identifico”, afirma.
Segundo a MC, ela terá como principais plataformas a luta por direitos das mulheres e dos negros, mas também afirma que quer melhorar a educação no Rio de Janeiro. A ideia é servir como prevenção contra os crimes. “Uma coisa é colégio integral para as crianças da comunidade. Porque elas estudam de manhã e de tarde ficam abandonadas. E com isso, lógico, aumentar o salário do professor”, afirma a futura candidata. De acordo com a cantora, o Estado “não vai conseguir acabar com a violência investindo em armas”, mas com educação.
Recentemente, Carol foi vítima de uma tentativa de feminicídio por parte de um ex-namorado. Ele invadiu a casa dela com uma faca, mas a funkeira conseguiu pedir ajuda e sobreviveu ao ataque. Segundo ela, esse episódio a fez percebesse ainda mais quais são os riscos que as mulheres correm. “Eu fico me perguntando: imagina a mulher que não tem câmera, não tem testemunha?”.
‘Eu sou porque nós somos’
De acordo com Talíria Petrone, vereadora mais votada de Niterói e amiga de Marielle, ver mulheres se candidatando pelo legado da vereadora é um “sentimento contraditório”. Ela explica: “Por um lado, é uma dor profunda, uma ferida que parece que nunca vai fechar. Por outro, é ver a Marielle viva em outras mulheres.” Para ela, essa é a chance de ver a amiga representada fisicamente e por meio de suas pautas. “É uma dor, mas também é uma urgência”, pondera.
Talíria afirma que essa é uma forma de “transformar o luto em luta” e espera que essas mulheres sejam eleitas “para romper com a lógica do que é visto hoje em dia nos espaços de poder”. Emocionada, Talíria afirma que tem chorado quase todos os dias por conta da saudade, mas que, ao mesmo tempo, se sente mais forte. “Eu sempre penso que ela era muito forte. Você olhava para Marielle e via uma gigante. Ela virou uma gigante ainda maior.” Segundo a vereadora, se a amiga pudesse dizer algo às candidatas, ela diria: “Eu sou porque nós somos.”
Reportagem originalmente publicada na Ponte.