Parlamentares progressistas foram campeãs na defesa dos direitos das mulheres nos últimos quatro anos, mas elas também tiveram participação relevante nos ataques a essas garantias. Oito deputadas e três senadoras estão entre as 10 mais bem posicionadas em relação aos temas de gênero em cada casa legislativa, de acordo com o ranking do Elas no Congresso de 2022, divulgado na segunda-feira. Por outro lado, mesmo que ocupem somente 15% das cadeiras no legislativo federal e com uma única deputada entre os 10 congressistas com o pior desempenho, as próprias mulheres têm 34,4% das atuações desfavoráveis.
O ranking, que pode ser acessado aqui, mostra a petista Erika Kokay (PT-DF) na liderança, com 27 Projetos de Lei, todos favoráveis à causa feminina. Eles estão distribuídos em mais de dez temas, que vão de proposições sobre violência contra a mulher até questões de saúde, economia e trabalho. A última posição na Câmara também fica com uma mulher, a deputada Chris Tonietto (PL-RJ), autora de 20 projetos avaliados como desfavoráveis – 17 deles sobre aborto, maternidade ou direitos sexuais e reprodutivos.
No Senado, quem encabeça a lista de atuações favoráveis é Leila Barros (PDT-DF), com 11 PLs distribuídos entre seis temas: violência contra a mulher, feminicídio, licença-maternidade, economia, trabalho e educação. A última posição fica com o senador Eduardo Girão (PODEMOS-CE), com quatro projetos desfavoráveis aos nossos direitos, sobre aborto, maternidade e microcefalia.
Na plataforma do Elas no Congresso, você pode acessar a página de cada parlamentar e conferir as ementas de todos os projetos, as notas e a relevância de cada proposição. O ranking parte de uma nota atribuída à atuação de cada um dos projetos de lei. As avaliações foram feitas por 19 instituições que atuam na área de direitos das mulheres no Brasil, sempre considerando a relevância das propostas. Veja, ao final da matéria, mais informações sobre a metodologia do trabalho.
Mulheres conservadoras
Salta aos olhos um detalhe sobre a representatividade feminina na 56ª legislatura do Congresso Nacional. Apesar do aumento de mulheres na Câmara e no Senado, foi também a composição mais conservadora desde 1964, segundo o levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Nesse cenário, a bancada progressista, mais do que atuar de maneira propositiva, trabalhou para frear ataques tanto do próprio Legislativo, quanto de outros poderes e organizações públicas e privadas.
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Entre os projetos analisados pelo Elas no Congresso, pelo menos 33 proposições se dedicaram a sustar portarias e resoluções do Ministério da Saúde e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).
Em 2020, por exemplo, uma portaria do Ministério da Saúde, n.º 2.561, criava uma série de entraves para o acesso ao aborto legal no país, como a obrigação de notificação da autoridade policial. Ela só não entrou em vigor devido ao Projeto de Decreto Legislativo 410/2020, que sustava seus artigos.
No texto do PDL, o grupo de parlamentares coautores pede o cancelamento da portaria, aponta sua “gravidade e flagrante inconstitucionalidade” e condena a conduta do poder Executivo: “a manobra de véspera por parte do governo federal nitidamente consiste em usar dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres como barganha ou ‘Cavalo de Tróia’”.
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Essa estratégia foi recorrente nos quatro anos de legislatura. “O que a gente teve foi um esforço para barrar retrocessos. As mulheres comprometidas com a agenda de gênero lutaram e se coordenaram para isso. Mas é uma situação muito ruim, já que temos um executivo que reafirma a desigualdade de gênero como política pública – e uma política de destruição das instituições que lutam por esta pauta”, avalia Danusa Marques, cientista política e diretora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília.
Além disso, alguns números ajudam a traçar um panorama de como o Congresso olhou para as mulheres nesse período. A atuação foi muito mais intensa nos dois primeiros anos. Depois, houve uma queda de quase 40% no interesse pelas pautas relacionadas a mulheres – considerando os dados levantados até o final do primeiro semestre, que já indicavam a baixa no número de proposições.
Apesar de estarem em desvantagem numérica, as mulheres trabalham em mais projetos que os homens. Entre as 1023 proposições legislativas analisadas no Elas no Congresso, 91 senadoras e deputadas participaram da redação de 803 projetos, enquanto 318 homens são co-autores de 1077 -, lembrando que vários projetos são elaborados coletivamente por grupos de representantes. Cada uma delas atuou pelos nossos direitos em ao menos 8 projetos, contra 3 no caso dos homens.
O mesmo aparece quando olhamos para as Comissões. Em menor número, cada senadora atua em 6 comissões, e cada deputada federal, em pelo menos 3, mas poucas conseguem espaços de liderança. No Senado, somente Kátia Abreu (PP-TO) ocupou a presidência de duas comissões ao longo do mandato – a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência e a de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
Já a Câmara chegou a ter mulheres no comando de 7 das 25 comissões permanentes, em 2021. Mas, atualmente conta somente com duas: Professora Rosa Neide (PT-MT), na Comissão de Cultura, e Policial Katia Sastre (PL-SP), na de Defesa dos Direitos da Mulher.
Além da sobrecarga, as discordâncias políticas e ideológicas também dificultam a atuação feminina. “Em 2018, elegemos o pior Congresso de todos, até pior que o de 2014. Há alguns quadros progressistas importantes, gente de primeiro mandato abertamente comprometida com uma causa pró-igualdade de gênero. Mas tivemos também mulheres de extrema-direita, com uma agenda abertamente neofascista. De maneira geral, foi uma coordenação difícil”, complementa Marques.
Mulher vota em mulher?
51,8% da população, 15% do Congresso. Os números deixam claro que eleger mulheres é um passo importante na busca por equidade de gênero, mas os dados do ranking também lembram do que disse Lélia Gonzalez, filósofa e antropóloga brasileira. Para ela, essa história de que “mulher vota em mulher” era “papo furado”. Tem muito mais coisa para entrar nessa conta.
Como mostra o ranking, são necessárias representantes com planos de governo voltados para a igualdade de gênero em todas as esferas, que entendam a complexidade dos problemas das mulheres e saibam situar gênero entre outras questões, com interseccionalidade. “Quem é a mulher brasileira, quais são os desafios situados das mulheres hoje? A candidata tem um contato com uma base social ou defende apenas seus próprios interesses de carreira política ou da sua classe? Isso pode ser um indicador de que a pessoa está alinhada ao debate público sobre igualdade, para além de uma posição cosmética de ser ‘pró-mulheres’”, complementa Marques.
Para cargos do executivo onde muitas vezes sequer há uma candidata mulher, um caminho possível é votar em homens aliados das mulheres. Mas é no legislativo que reside a maior possibilidade de mudança. E também onde muitas pessoas escolhem seus representantes sem muito critério.
Eleição é um método tradicionalmente aristocrático. Democracia significa que todo mundo tem o mesmo valor. Quando a gente olha para o parlamento e vê que a maioria da população não está representada, é um forte indicador de que as pessoas não estão valendo a mesma coisa. Isso é déficit democrático”.
Danusa Marques, cientista política e professora da UnB
Como, então, eleger parlamentares que trabalharão, de fato, pelas mulheres? Dos 594 deputados e senadores em exercício, 530 tentam reeleição ou buscam cargos no legislativo estadual, ou no executivo. Assim, se sua candidata já ocupou ou ocupa um cargo público, dá pra fazer muitas perguntas: De que projetos de lei ela foi coautora? A que temas se dedicou? Quem ela apoiou? “Que grandes debates são importantes nos movimentos feministas e das mulheres organizadas? A representante busca esse diálogo? Ela prioriza a discussão sobre interseccionalidade, o diálogo com os diferentes feminismos? Se sim, isso mostra que ela está alinhada com a discussão da sociedade civil”, aponta Danusa Marques.
A atuação voltada para a realidade socioeconômica brasileira também pode ser um indicativo importante. “As mulheres são o grupo social mais vulnerável nesse momento em que as pessoas estão passando fome no país. A candidata está pensando neste aspecto?”.
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A especialista ainda reforça que é importante ficar atenta ao esvaziamento do discurso do empoderamento feminino, que pode dar visibilidade a candidaturas de mulheres que, na verdade, atuam em prol dos homens. “Para usar o conceito da Wendy Brown, o que acontece é quase uma apropriação atrasada do slogan ‘lugar de mulher é onde ela quiser’ pela razão neoliberal. Mas, é uma apropriação que tira potência de mudança social dessas agendas”, explica, e cita como exemplo parlamentares que votam a favor do armamento da população, de medidas punitivistas ou contra os direitos sexuais e reprodutivos.
Outro ponto para o qual Marques alerta é a autoafirmação das candidatas pela linguagem da meritocracia. “Quando o slogan reforça o individualismo e separa as vitórias da candidata da experiência coletiva. É tudo mérito dela. É a self made woman. Não deve nada para o coletivo e não vai ser cobrada em relação ao coletivo”, reflete Marques. Para conhecer mais sobre os projetos das parlamentares que são candidatas, acesse o Elas no Congresso.
Metodologia
O Elas no Congresso é um projeto que usa dados públicos do Congresso Nacional para monitorar os direitos das mulheres no poder legislativo e avaliar a atuação dos parlamentares. A nota de cada senador e deputado no ranking depende da pontuação dos projetos com os quais ela/ele e seu partido estiveram envolvidos e da pontuação geral do seu partido. Cada proposta recebe uma pontuação, que vai de -2 a 2, de acordo com sua relevância e seu posicionamento em relação aos direitos das mulheres. Para entender como a pontuação é feita, acesse: elasnocongresso.com.br/metodologia.