Pele escura, lábios grossos, cabelos crespos, trançados e com dreads exibidos com orgulho em selfies e campanhas publicitárias. Reflexo de um movimento de afirmação estética e reivindicação política que há anos tem sido construído por pessoas negras, mas que nos últimos anos passou a ser explorado comercialmente por mulheres brancas. Sob a justificativa de gosto pessoal e homenagem, influenciadoras digitais, cantoras e modelos são acusadas de usar bronzeamento artificial, maquiagens, preenchimento labial, penteados e acessórios para aproximar a própria imagem à aparência de uma pessoa negra, ao mesmo tempo em que lucram com isso. O comportamento ficou conhecido como Blackfishing.
O termo nasceu nas redes sociais, mas se popularizou em 2018 por causa de um tweet viral da jornalista canadense Wanna Thompson que, na época, compartilhou sua indignação ao ver celebridades se passando por pessoas negras na internet: “Podemos começar um tópico e postar todas as garotas brancas fazendo cosplay de mulheres negras no Instagram? Vamos divulgá-los porque isso é ALARMANTE”. Num artigo escrito sete dias depois para a Revista Paper, ela explicou que a intenção era expor o que ela considerava ser uma epidemia.
Caso midiático
A socialite Kim Kadarshian é uma das celebridades que foi acusada de fazer blackfishing ao aparecer com a pele mais escura ao posar para uma campanha publicitária para a própria marca de maquiagem. A mesma acusação foi feita quando ela fez um ensaio para a revista 7Holywood. Na ocasião, além de usar o mesmo recurso para escurecer a própria imagem, ela usou uma peruca afro. Fotos em que ela aparece com tranças nagô foram vistas pela mesma perspectiva.
“O blackfishing explora e lucra com a estética negra, sem contribuir para a causa antirracista ou para a valorização da diversidade. As pessoas que o praticam ganham dinheiro, fama e influência às custas da cultura negra, sem se responsabilizar pelos problemas sociais e históricos que afetam as pessoas negras”, diz a especialista em moda e diversidade Dani Rudz.
Blackfishing x Apropriação Cultural
De acordo com o Cambridge Dictionary, apropriação cultural tem a ver com “o ato de pegar ou usar coisas de uma cultura que não é a sua sem mostrar que você entende e respeita essa cultura.” O blackfishing está um passo além disso: é copiar a aparência de uma mulher negra, usando maquiagens, procedimentos estéticos, filtros, buscando status, recompensa social ou financeira.
Quem o faz “não quer apenas se apropriar de um ou outro elemento da cultura negra, essa pessoa tem a intenção de enganar quem a vê”, explica a antropóloga Izabel Accioly. Por terem motivações distintas, Izabel complementa que “nem toda apropriação cultural é blackfishing, mas todo blackfishing têm apropriação cultural”.
Para Wanna Thompson, jornalista que viralizou o termo, o problema do blackfishing atravessa não só uma questão de raça, mas de classe, porque o que está sendo majoritariamente copiado são estilos e estéticas em que as mulheres negras e pobres foram pioneiras. Criações carregadas de ancestralidade, história e identidade, mas que só passaram a ser reconhecidas socialmente e financeiramente quando foram dissociadas de sua origem. “Com a ajuda da mídia, as mulheres brancas foram amplamente creditadas por criarem diversas “tendências” que já existiam muito antes”, diz Thompson.
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Ao ocupar lugares assumindo uma estética negra, mulheres brancas ajudam empresas e marcas a disseminarem uma ideia de que são inclusivas, quando, na verdade, estão lucrando com aspectos da negritude, sem valorizar financeiramente pessoas negras. Estratégia que invisibiliza e alarga as lacunas causadas pelo racismo, separando pessoas negras de lugares de destaque e do acesso ao dinheiro. Justamente por ter essa característica que o blackfishing fala sobre o poder de uma parcela da sociedade ditar o que é “inferior” e “superior”, dependendo do que eles acreditam ser bom o bastante.
“Estas são as mesmas características que, outrora ridicularizadas pela cultura branca dominante, são agora cobiçadas e ditam a beleza e a moda atuais nas redes sociais, com as contribuições das mulheres negras a serem apagadas ao mesmo tempo”, argumentou Thompson.
Sequestro dos frutos de uma luta histórica
Historicamente, mulheres negras foram forçadas a se enquadrar em um padrão estético europeu para aumentarem a chance de terem direitos e acessos, como serem consideradas em vagas de trabalho, por exemplo. Mas também foram impelidas a alisar o cabelo e apagar seus traços sob a justificativa de que só assim seriam consideradas bonitas e desejadas. Contra essa ideia, vários movimentos políticos e sociais, formados por pessoas negras, lutaram, fazendo um trabalho de resgate da autoestima e afirmação da negritude ao longo do tempo.
À medida que os frutos dessa mobilização começaram a surgir, extrapolando seus efeitos para a publicidade, políticas afirmativas, e reivindicações por mais diversidade racial nos espaços, a forma com que pessoas brancas se relacionavam com a negritude também mudou, diz a antropóloga Izabel Accioly. “Se o padrão estético [que está sendo valorizado] muda, eles mudam [a própria imagem] também. É uma forma de não perder o privilégio.”
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Embora traga uma discussão importante, especialistas alertam que é preciso cuidado na hora de usar o termo. Por causa do racismo, é comum que mulheres negras e não-brancas tentem se embranquecer e apagar seus traços para se protegerem. Quando passam a ter orgulho da sua identidade e embarcam em um processo de transição para assumir as próprias características, é natural que traços que, até então, estavam ocultos, apareçam, fazendo com que essas pessoas sejam lidas de outra forma socialmente.
Nesse momento, algumas delas são injustamente acusadas de fazer blackfishing, o que – além de ser violento, contradiz o significado da prática, que tem a ver com a ideia de que uma pessoa branca está fingindo ser negra. E não se redescobrindo enquanto tal.
A especialista em moda e diversidade Dani Rudz também salienta que não é blackfishing privilegiar o trabalho de artistas e estilistas negros. “Pessoas brancas dizem que têm medo de consumir moda afro-brasileira, mas quando você compra e usa criações de pessoas negras, você se posiciona como antirracista e contribui intelectualmente e financeiramente.”