[fusion_text]Quem senta no divã hoje é a Letícia Silva.
“Às vezes frequento lugares em que parece que não me encaixo. De jeito nenhum.
Não sei se é um preconceito meu sobre mim, ou dos outros… Mas isso existiu desde que eu era pequena, estudando em um colégio particular.
Sou de classe média. Sou vista por muitos, como parda, morena. Eu mesma não me enxergava como negra… E meu cabelo sempre foi parte dessa sensação. Eu alisava e ficava meio artificial. Logo que a raiz crescia um centímetro, lá estava eu, na cadeira do cabeleireiro pra alisar de novo. O detalhe é que sentia uma ardência no couro cabeludo, meu estômago, mas eu tinha que aguentar, porque se tirasse o produto rápido meu cabelo não alisaria. E eu precisava disso, porque achava que era mais aceita por ter cabelo liso, mesmo ainda tendo as piadinhas – porque era melhor aguentar piadinhas sobre cabelo alisado, do que sobre cabelo crespo. Mesmo assim, nunca fui chamada, por exemplo, pra ser uma daquelas 15 meninas em festas de 15 anos.
E nos caderninhos que os meninos davam notas pras meninas, era sempre uma das que ganhava menos notas. Isso marca a gente. Estou com 30 anos, prestes a fazer 31, e me lembro dessas coisas!
Em 2012, passei por algumas mudanças e já vinha pensando em deixar o cabelo natural. Tive que fazer big chop (cortar fora tudo que tivesse química), porque meu cabelo tinha muita química e não adiantou investir em produtos para cabelo crespo (em 2012 não tinha tantos produtos como hoje). Foi um choque cortar o cabelo tão curtinho, mas eu gostei! Gostei de ver os cachinhos se formando, mas não entendia porque meu cachinho era tão fechadinho e crespo.
Mesmo assim, fui gostando da minha identidade aparecendo. Meu cabelo revelou ainda mais minha negritude. E eu me achava bonita assim.
Tenho várias histórias sobre meu cabelo. Vejo que incomoda mais que a cor da minha pele. Mas eu continuo ali, com meu cabelo (e um batonzão de preferência), incomodando! E mesmo tendo consciência dos privilégios que tenho por ter a pele mais “clara” e ser de classe média, sinto essa sensação de não me encaixar, até hoje.
Outro dia fui no Shooping JK Iguatemi. Olhava pros lados e via poucos negros. Será que eu não tinha que estar ali? Participo de um grupo de estudos na USP. Olho pro lado e não vejo muitos negros. Será que eu não tinha que estar ali? Eu só entendo que o racismo não é coisa da minha cabeça quando pergunto como os negros se sentem nesses lugares onde sinto esse estranhamento e quando ouço suas respostas, penso: “Ufa. Não estou louca. É normal se sentir assim”….Na verdade não é nada normal, a gente não pode aceitar sentir isso, mas como é que a gente muda o que a gente sente pelo olhar que o outro nos olha?
O racismo no Brasil é velado, mas a gente sabe ler a expressão e o olhar dos outros sobre nós.
Comprei uma lente de contato verde. Ixiiii causou um puta estranhamento…Negro não pode ter olho claro, eu ouvi. Logo, eu não posso ter olho verde. Mulher branca pode. Pode ter olho de qualquer cor, que põe lente e fica natural. Pode ter o cabelo de qualquer cor e tipo. Tudo fica bom. No negro não. Na mulher negra não.
É difícil e tem gente que acha que é mimimi. Hoje lido melhor com o que os outros pensam sobre mim. Não tem como controlar os outros, né?
Por isso, fico muito feliz com a revolução que as mulheres negras estão fazendo! Quando deixamos nosso cabelo natural, estamos representando uma libertação da imposição do padrão de beleza branco, liso, estereotipado. E se a gente quiser alisar o cabelo, acho que só precisamos compreender internamente que não seja por imposição e sim por opção.
O racismo continua por aí. Todos os dias. O nosso desafio é nos dar mais visibilidade, ampliando nossos lugares, porque o caminho é ainda é longo e de muita luta. Uma coisa eu sei: vou continuar nesses lugares e em outros e outros, com meu lindo cabelo crespo, incomodando mesmo!
Também tem um desabafo para fazer ou uma história para contar? Então senta que o divã é seu! Envie seu relato para helena.dias@azmina.com.br
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