A presença lésbica na Internet vive a potência e as dificuldades de se usar redes sociais desenvolvidas na lógica patriarcal como um dos lugares de encontro e troca. Quando o ódio alimenta cliques e likes que dão lucro, é possível criar espaços seguros nas redes sociais? Com quais proteções legais podemos contar? Qual o papel das plataformas de Internet na moderação de conteúdo? É possível vislumbrar tecnologias feministas que substituam essas empresas que monopolizam nossas interações digitais?
Para responder essas perguntas, lançamos hoje, pela Coding Rights, a pesquisa “Visibilidade sapatão nas redes: entre violência e solidariedade”. O estudo parte de entrevista de outras seis mulheres lésbicas que utilizam a Internet como forma de amplificar existências e resistências em um contexto de apagamentos históricos.
A defesa de direitos de mulheres lésbicas é uma agenda de amor e liberdade, capaz de questionar a heteronormatividade compulsória e outras violências patriarcais que afetam a todas as mulheres. As criadoras da Revista Brejeiras bem ressaltam “amar mulheres é um ato revolucionário”, como tal, incomoda estruturas dominantes, que reagem tentando apagar essas existências.
Quantas mulheres que amavam mulheres tiveram seus afetos negados? Sobre quantas delas podemos falar hoje e nos inspirar? Pouquíssimas. A pesquisa é também um registro contra a invisibilização do amor entre mulheres na sociedade. Relembramos trajetórias como a de Eleanor Roosevelt que, para além de seu trabalho de diplomacia pela aprovação da Declaração Universal de Direitos Humanos, teve que invisibilizar seu relacionamento com a jornalista Lorena Hickok. Nos inspiramos em Audre Lorde, mulher negra, poeta, escritora, intelectual e sapatão que fez questionamentos fundamentais às práticas do feminismo branco. Passamos por histórias reais de mulheres silenciadas, falidas e vítimas de violência por serem assumidamente lésbicas. Mas também apresentamos a lutas de tantas de nós desde a fundação do Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF) até hoje.
Nosso estudo é tecido pela voz e o silêncio de mulheres que amam mulheres. Desde aquelas que viveram e calaram. Aquelas retratadas em biografias de forma assexuada, evitando-se os afetos vividos. Não julgamos o silêncio de nenhuma delas, mas sim a sociedade que as silenciava. E homenageamos todas antes de nós que ousaram falar e todas que conosco falaram diretamente.
Nossas seis entrevistadas vocalizam, por meio da internet, uma luta coletiva de milhares de mulheres, quebrando o ciclo de silenciamento e fomentando redes de solidariedade. “Para nós, a internet surgiu como um modo de obter visibilidade e atingir mais mulheres (lésbicas), pois ainda temos poucas mapeadas.”, diz Kamilla Valentim, da Coletiva Resistência Lésbica da Maré.
Elas o fazem sob risco de exposição à violência física e psicológica, ainda mais no contexto de um país que ataca nossos direitos, mal produz escassos dados sobre a população LGBTI+, no qual o próprio presidente se elegeu e governa disseminando ódio contra mulheres, LGBTs, população negra e indígena. “Quando damos visibilidade à imagem da sapatona preta vem muita gente questionar”, relata Bruna Bastos, articuladora do Coletivo Brejo e do Sapatona Entendida.
“Chegar na rede social e poder polarizar e falar o que você quer não faz de você uma pessoa corajosa, porque se você estivesse sentado numa mesa de jantar com aquela pessoa eu garanto que você não iria falar um terço do que você está colocando ali. Isso não é, portanto, um ato de coragem ou liberdade de expressão, mas sim um ato de covardia”, afirma Mônica Benício, viúva de Marielle Franco e ativista dos direitos humanos e LGBTQIA+.
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A violência atravessa muitas de nossas interações nas redes e fora delas e, assim como outras violências de gênero, geralmente, passa impune. Tendo em vista o processo de implementação da decisão de 2019 na qual o STF equiparou o crime de racismo à LGBTfobia, o estudo também traz análises de respostas de pedidos da Lei de Acesso à Informação enviados pelas autoras aos 27 Estados indagando sobre o registro de crimes motivados por LGBTfobia. No total, apenas 12 Estados nos forneceram dados desses crimes, contabilizando um total de 2.865 casos de LGBTfobia registrados entre 13 de junho de 2019 e junho de de 2020. 4 Estados alegaram falta de tipificação, mesmo depois da decisão do STF. A subnotificação impera e não existem dados desagregados para saber quais dessas notificações dizem respeito à lesbofobia.
Fonte: Respostas aos pedidos realizados com base na Lei de Acesso à Informação, todas as respostas na íntegra estão disponíveis na pesquisa.
Apagar não é só silenciar, mas também ocultar, deixar de contabilizar. A falta de dados sobre as existências lésbicas em particular – e LGBT+ em geral – e o desconhecimento das violências que nos são impostas é um forma de apagamento e de garantia a disseminação do ódio, seja ele físico ou moral.
A subnotificação para condutas de internet é ainda mais gritante. Michelle Seixas, ativista da Associação Brasileira de Lésbicas (ABL), ao narrar a invasão da página da ABL no Facebook, bem ressaltou que a separação entre online e offline não faz muito sentido quando se trata dos ataques: “entraram lá e mudaram a foto de perfil por um vidro quebrado. Interpretamos como não só uma ameaça de rede social, mas como uma ameaça contra nossos corpos, ameaça física mesmo.”
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É fato que várias formas de violência contra mulheres lésbicas, na rua ou nas redes, prevalecem sem dados e sem resposta, seja por todos os limites estruturais que existem à judicialização de violências de gênero, seja pelas condutas e valores machistas que regem as empresas donas das redes sociais. A entrevistada Camila Marins, mulher lésbica negra e uma das editoras e criadoras da Revista Brejeiras, comenta que “conteúdos contrários à existência lésbica geram cliques, e cliques representam dinheiro. Então, sem controle social o ódio se torna fonte de lucro.”
As entrevistadas também relataram interações indesejadas que apontam para uma fetichização machista de mulheres lésbicas. E os algoritmos das empresas de Internet também alimentam esse tipo de interação. Por exemplo, só em 2019 o Google anunciou uma mudança em seu algoritmo para que a palavra lésbica deixasse de ser conectada automaticamente a conteúdos pornográficos.
Além disso, a palavra “sapatão” tem sido censurada nas redes sociais, removendo muitos posts do movimento de mulheres lésbicas. É o caso da nossa ilustração de gif de uma sapinha dançante, censurada pelo Instagram por usar a palavra:
Para hackear essa tendência, muitas das entrevistadas relatam mudar a grafia para Sapa_tão ou Sapatã*. Enquanto isso, quantos posts ofensivos, racistas e lesbofóbicos continuam no ar? A lógica patriarcal está embutida no código dessas plataformas.
A falta de transparência e devido processo nas plataformas também é frustrante. Bruna Bastos contou que já perdeu sua página do Facebook após ataques e não conseguiu obter assistência, nem resolver o problema.
Como bem disse Audre Lorde: “as ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa-grande. Podem nos permitir temporariamente ganhar dele em seu próprio jogo, mas nunca nos trarão uma mudança genuína.”
Se hoje não encontramos amparo no Congresso Nacional – onde a maioria conservadora impede os avanços propostos por movimentos sociais e deputados progressistas; se no Executivo Federal temos o desmantelamento de estruturas voltadas à promoção e defesa de direitos e, pior, a própria disseminação do ódio contra nós facilitado pelo modelo de negócios de um monopólio de plataformas, existem outros caminhos possíveis, o texto termina mapeando iniciativas ciberfeministas do Brasil e América Latina tanto para fomentar redes e práticas de cuidados digitais, como para desenvolver outras plataformas e ferramentas autônomas que, baseadas em valores feministas, nos permitam de fato hackear o patriarcado.