Recebi meu diagnóstico no dia dez de julho de 2020, em meio à pandemia do novo coronavírus. Cheguei pela manhã no Centro de Referência e tratamento de HIV e AIDS, há semanas vinha apresentando sintomas típicos de quem foi expostos aos vírus: já tinha perdido cerca de 10 kgs, suores noturnos, e tinha uma candidíase bucal.
Nasci na Zona Leste de São Paulo, na favela da Ilha, uma comunidade no distrito de Sapopemba e cresci para me tornar uma jovem jornalista negra e trans.
Fui uma criança afeminada, com traços e trejeitos lidos como de um “viadinho”. Me custou muito entender o que era essa palavra: “viadinho”. Sempre fui chamada com esse nome nas escolas e lugares em que passei. Ser uma criança na construção de afetividade, confiança e também na corrida de entender quem eu queria ser não mudava em nada o fato de adultos jogarem em cima de mim os seus estereótipos e preconceitos.
Falo da minha infância porque ela foi decisiva no momento do diagnóstico. Não tive tempo para filtrar o que estava acontecendo, não consegui chorar e muito menos falar alguma frase completa, morria de medo de me enrolar nas palavras e chorar.
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Pedi um copo de água e respirei fundo…
Dentro da minha cabeça, me concentrava para não me desesperar, não entendi quase nada das falas da psicóloga, estava em outra dimensão – uma segura para as minhas dores e frustrações.
Quando jovem já assumia os traços afeminados e “enviadados” como forma de expressão e resistência. Sempre escutei como era importante eu “me cuidar” na hora do sexo e as piadas sorofobicas sempre existiram direcionadas para um grupo determinado de colegas de classe, os gays.
Logo depois de escutar as falas da psicóloga, fui para o Pronto Atendimento, apresentava outros problemas que precisavam de um cuidado mais urgente. Estava com um pedaço da minha infância, uma amiga e irmã, a Mel Oyá. Ela me deu um abraço, e foi no meio daquele calor e cuidado que consegui enfim falar as palavras que estavam presas desde o diagnóstico: “Eu tenho HIV.”
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Noto o quão importante é ter alguém no momento do diagnóstico, porque sempre me senti muito sozinha. E com o tempo fui aprendendo mais sobre os processos da solidão que me atravessa, pois encontrei na minha cor, negra, o disparador para aprender mais sobre mim. Sou filha de um homem negro de Alagoas que, em todas a suas oportunidades, resaltava a beleza dos nossos cabelos, olhos, cores e formas.
Ser negra no Brasil é nascer de um parto negligente e com muita dor, é um eterno Banzo*, uma saudade do que ainda não vivi, é não ter a certeza do amanhã. Por muitas vezes neguei a minha cor, cabelo e costumes, mas sempre foi o corpo negro que me mostrou apoio e me ensinou a importância de criar redes, as “Quilombagems” atuais.
Enquanto estava sentada, refletia sobre tudo que estava mudando, nem saí do hospital e já criava planos de como seria a minha vida, a cabeça pulsava a milhões.
Quem é Travesti sabe como é manter a “banca ” e postura firme em todos os momentos. Foi quando eu observei que sempre carregava HIV, muito antes de um exame me mostrar, mas como um estigma: as piadas e olhares, a sorofobia começa muito antes do diagnósticos para corpos vulnerabilizados pela sociedade.
Me senti culpada por ter contraído HIV? No primeiro momento sim. Todos os dias travo uma corrida feroz contra as estatísticas, dessa eu não consegui escapar. Mas como fugir de algo que sempre foi dado e imposto? A sociedade sempre me disse que essa estatística, de conviver com o HIV, cairia sobre mim.
Mesmo com estudos e quebras de tabu sobre o tema, a pessoas ainda carregam esses preconceitos enraizados. E como sou jornalista ficou claro que muita parte desses preconceitos existem por falta de informação e isso me faz ver a importância que meu trabalho tem. Não é sobre comunicar no formato da mídia hegemônica, é entrar dentro da quebrada e trocar com os nossos, acabar com esse tabu dentro dos meus territórios, me fazer ser ouvida e entendida como alguém que produz conhecimento dentro da quebrada.
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Quero ser um nó de rede na minha rede. E me encontrei na comunicação porque sempre tive a necessidade de ser ouvida, apresentar outros lados, e fazer pessoas que carregam vivências que se aproximam da minha também se sentirem parte dessa terra, como alguém que merece ter a sua história contada. E essa capacidade não está nas mãos dos jornalistas, brancos e héteros? E se eles têm essa capacidade porque nunca fizeram?
Estar e me fazer viva na sociedade me levou a entender esses deslocamentos e a partir deles, criar novas narrativas .
Quatro meses depois do diagnóstico estou indetectável, termo usado para a contagem baixa das células de HIV no corpo e com uma saúde excelente. Claro que levo um dinâmica de vida mais regrada com uma atenção maior para alimentação mas mesmo assim ainda surgem novos sentimentos que estou aprendendo a lidar. Um Salve.
*Banzo: como se chamava o sentimento de melancolia em relação à terra natal e de resistência à privação da liberdade praticada contra a população negra na escravidão.