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11 de abril de 2019

Quem decide quem merece morrer?

Eu sei quem decide, é a mesma estrutura social que também decide o bairro e a cor de quem vai morrer. Que decidiu que meu irmão Dejailton merecia ser executado

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“O nome do meu irmão é Dejailton, nunca deixou de ser. Ele foi fuzilado e dizem que mereceu. Às vezes acho um retrato dele, olho não aguenta não, enche de água”. Foto: Arquivo Pessoal

Essa semana tenho pensado muito no meu irmão. Quando eu tinha 13 anos, meu irmão foi assassinado. Lá em Val Paraíso, que é quase Brasília, mas ainda é Goiás. Ele sempre foi um moleque doido, cara de bom coração com caminhos errados. Muleque doido. Sempre foi amoroso e prestativo, mas nunca me deixaram ver isso. Me fizeram acreditar que ele merecia morrer.

Mas ele não merecia. Onde a gente cresceu nem erva-daninha vinga.

Ele jogava bola como ninguém, era só ele chegar para jogar bola que todo mundo ficava bravo. Até carregar a bola no pescoço ele carregava e se você ameaçasse pegá-la, ele enfiava na camiseta.

Minha mãe nunca fala disso. Mal ela sabe que, assim como ela, eu ainda o carrego no coração. Todo dia ouço a música Chapa do Emicida. Canto o refrão como se fosse o último da minha vida: “Mal posso esperar o dia de ver você voltando pra gente. Sua voz avisar, o portão bater. Você de um riso contente”.

Riso contente era a especialidade dele. Quando pequena, eu não era fã dele. Hoje, se ele apresentasse um show no Pacaembu eu ia fazer questão de encher o estádio porque ele merecia gente olhando por ele. Assim como hoje eu sei que ele olha por nós. Ele merecia gente olhando por ele, olhando por ele, não pelo seu obituário, não falando “morreu porque mereceu”.

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Assim como meu irmão, o Evaldo é um cara preto que foi fuzilado, executado. Seu carro foi atingido por 80 tiros. Seu filho, sua esposa, o sogro e uma amiga da família estavam junto. A bala “perdida”, “confundida” ou “merecida” atinge o coração de todos nós.

Atinge o coração de cada Maria, que assim como minha mãe, sente e chora, nem que seja por dentro, a dor de perder um filho. Alguém que, como todos nós, não merecia morrer.

“O exército achou que fosse um carro fruto de assalto”. E se fosse?

Nós contra nós não leva a nada, é importante ter isso na cabeça. Por que é preciso saber os antecedentes criminais de alguém para julgar se ela morre ou vive? Extermínio não pode ser política pública.

Como no Rio, em São Paulo essa “política pública” é rigor. Afinal, 90% dos casos de assassinatos cometidos pela polícia de SP terminam arquivados e sem punição, segundo a Defensoria Pública do Estado informou a reportagem do Intercept Brasil. Sendo que 64% das pessoas assassinadas por policiais são negras, de acordo com levantamento realizado pelo UOL.  E vale ressaltar: 56,4% dos policiais em SP são brancos e 31,1% são negros, segundo reportagem do UOL com dados da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

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Merecer morrer. Essa ideia sempre me perseguiu. Meu irmão não mereceu morrer, ele não mereceu grande parte do rumo que a vida dele tomou, mas todos me diziam, quando eu tinha 13 anos, que ele merecia morrer. A maldade, ou a inocência, precisa tomar conta de um adulto para ele dizer isso para uma criança. Não tem palavra que possa confortar.

Afinal quem decide quem merece morrer? Eu sei quem decide, é a mesma estrutura social que também decide o bairro e a cor de quem vai morrer.

O nome do meu irmão é Dejailton, nunca deixou de ser. Ele é baiano, de Barra-Bahia, terrinha de minha vó, de minha mãe. Às vezes acho um retrato dele de bobeira lá em casa, olho não aguenta não, enche de água. Esse aperto no peito vai continuar, vai dar vontade de rezar sem religião, vontade de dizer pra Deus que daquela vez ele deu mancada.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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