Eu recebi o convite pra escrever sobre Marielle no dia seguinte à morte dela. E era para entregar tão logo eu pudesse.
Não pude.
Atrasei as palavras, o grito, silenciei.
Foi assim que fiquei por quatro dias, apenas obedecendo à agenda de manifestações que se multiplicaram pela cidade em homenagem à memória dela: do centro à Maré.
Estive, como muitas pessoas, completamente estarrecida, engasgada, travada. Foram 13 disparos. Quatro tiros na cabeça de Marielle. Um para cada opressão que ela representava:
Matou a mulher. Matou a negra. Matou a favelada. Matou a lésbica.
E matou também um pouco de cada uma de nós. Afinal, no mês que é marco regulatório da luta das mulheres, uma mulher que lutava por nós morreu. Mais uma.
Ela foi morta após sair da Casa das Pretas, onde protagonizava um evento intitulado Jovens Negras Movendo Estruturas. Eu não fui, mas estava representada na mesa pela minha amiga e companheira de trabalho Ana Paula Lisboa, que foi falar sobre a alegria de lançar o nosso projeto: um webprograma apresentado por três mulheres negras (eu, ela e Taísa Machado) chamado Querendo Assunto.
Estávamos em estado de plenitude, mas fomos do céu ao inferno em pouquíssimo tempo. Estávamos lançando um programa, como a Ana disse, que existe porque o racismo existe. Afinal, onde estão as pretas? Não estão em programas desse tipo. A menos que estejam cumprindo “cota”.
Foi difícil entender como há apenas quatro dias estávamos na mesma Favela da Maré da Marielle lançando este projeto em uma festa, com um público feliz, dançante e emocionado com essa conquista e seis dias após estaríamos nessa mesma Maré, caminhando e velando simbolicamente seu corpo, uma mulher preta de luta.
Importante destacar que o papo entre nós na mesa de lançamento era justamente sobre o direito de falarmos de nós mesmas e apenas vivermos. Poder falar sobre viagens, projetos, filhas, sexo, relacionamentos… “nadar na superfície”, como disse uma amiga. Estávamos nos dando esse direito de nadar na superfície e apenas ser.
Estávamos de fato sentindo como quem move estruturas. Marielle, inclusive, confirmou com Ana sua participação na segunda temporada do programa e disse que gostaria de estar presente no dia seguinte, na festa de lançamento do primeiro episódio, que não por acaso foi gravado com outra preta potente, a jornalista Flávia Oliveira, a quem eu encontrei desconsolada no primeiro ato por Marielle.
Não teve festa, teve lamento.
Teve milhares de pessoas nas ruas da cidade gritando MARIELLE PRESENTE!
Marielle, amiga de todo mundo
Minha relação com a Marielle era exatamente esta. Não éramos amigas pessoais, dessas de frequentar a casa uma da outra. Éramos amigas de militância. Porque era isso que Marielle era pra muita gente. Ela fazia política com afeto. “Eu sou porque nós somos” era a sua frase.
E, olha que lástima, só após sua morte uma amiga percebeu que ela havia postado uma foto de um abraço nosso com essa mesma legenda. Sinto-me honrada por ter divido momentos importantes com ela na mesma medida em que me sinto perversamente culpada.
A última coisa que Marielle me disse, há poucos meses, na lateral da Câmara Municipal, após uma marcha, foi que precisava que a gente se mobilizasse de forma mais presencial na Câmara.
Dói. Marielle estava sentindo a solidão de quem conquista espaços em que não estamos. Marielle estava sentindo a solidão de quem ascende e não vê os seus no mesmo espaço. E nós não conseguimos protegê-la.
Dói porque Marielle era gente da gente. Era com quem nós nos identificávamos. Eu mesma a conheci na saída de um filme no cinema, no início da campanha dela. E ela sabia quem eu era. Que honra! Marielle, que ainda não se sabia tão enorme, acredito eu, me reconheceu, falou comigo. Que mulher!
Marielle fazia política com alegria e afeto sem perder a bravura e a coragem. Era quem estava ao nosso lado nas lutas e não apenas do lado de dentro de um gabinete frio. Ela estava com a gente nas ruas, nas comunidades e nas reuniões. Ela estava colocando em projetos de lei tudo aquilo pelo que lutamos há décadas. Ela prometeu e cumpriu.
E agora?
É pena que, sabemos, sua missão está inacabada. Quantas perguntas não estamos nos fazendo agora?
Estamos movendo estruturas?
Estamos no caminho certo?
Por que não protegemos Marielle?
POR QUÊ?
Como nos protegermos?
Como proteger quem protege?
Como cuidar de quem cuida?
Não é nenhuma novidade pra gente que é preta. Matam-nos todos os dias. Já naturalizamos inclusive a repetição das estatísticas: o feminicídio entre mulheres negras aumentou 54% e entre as brancas reduziu 9,5%. Repetimos isso incansavelmente na esperança de que este fato comova alguém, mas a verdade é que não.
Já fomos todas Claudias, Luanas e estamos todas Marielle. Sabe-se lá quem seremos daqui a uns dias. O sistema nos massacra. Se não de forma literal, com tiros em nossas cabeças, nos matam de adoecimento, de tristeza, de pobreza, de impotência, de descrédito, de sufoco, de abandono, de sobrecarga.
Fazem com que a gente se sinta tão sem importância que não nos damos conta que também precisamos de proteção, ajuda e cuidado. Marielle não pediu proteção.
Estamos acostumadas a abraçar o mundo com os próprios braços. A parir um planeta inteiro. E a ter muito pouco de retorno sobre as coisas mais relevantes que fazemos.
Eu não paro de pensar se Marielle em vida soube o quanto ela era enorme. O quanto de gente ela impactou e a diferença que fez em tantos movimentos.
Eu disse a uma amiga, a Giovana Xavier: “poderia ter sido eu ou você”.
E ela me respondeu: “sim. Poderia ter sido eu ou você muitas coisas, como por exemplo, a chegar tão longe”.
Poderia ser eu a ganhar um prêmio, a desafiar o sistema, a viajar o mundo todo, a dirigir filmes, apresentar programas, chefiar grandes equipes, ter uma vida boa, sem grandes questões ou fardos. Tendo o direito de apenas ser, de apenas respirar sem sermos obrigadas a mergulhos em mares tão revoltos e sombrios.
Poderia ser a gente a não ser obrigada, no meio de uma semana feliz, entender que não temos muito tempo para rir despreocupadamente.
Remonto-me a outras grandes mulheres, que vivas ou mortas nos ensinam que calar é um direito, mas não nos protege. Foi o que disse Audre Lorde. Que também disse, entre outras palavras, que a nossa raiva é legítima e nos move. Podemos ter raiva. Nem tudo é sobre amor.
Angela Davis também disse que para mudarmos a estrutura é necessário que não nos adaptemos a ela.
Agora estou eu aqui em pé nessa estrutura vil e nociva pensando: o que podemos fazer para continuá-la movendo?
O que fazer para não fazer da morte da Marielle apenas mais um número?
Como nos cuidar e como cuidarmos umas das outras sem sermos alvejadas pelo sistema, sem virarmos alvo?
Precisamos falar sobre Marielle sempre.
Precisamos falar sobre nós.