Com vídeo e colaboração de Jarid Arraes
— A delegada não apura esses crimes que rolam depois da meia-noite – Marlene Anunciação ouviu um dos funcionários da delegacia cochichar, em profunda consternação, enquanto tentava saber detalhes da investigação do assassinato de sua menina – Ela tava no lugar errado na hora errada! Tá procurando o quê andando na rua uma hora dessas?!
Engolindo soluços, ela se esforça pra lembrar o rosto da filha, Juliene, já tão obscurecido pelos boatos e os maus julgamentos dos policiais, dos jornais de fofocas e da língua afiada de quem não tem o que fazer. Juliene de sorrisos fáceis, sua menina alegre de 19 anos, que achava que todo mundo era seu amigo. Juliene que dançava sem se cansar. Juliene que ia prestar vestibular de educação física na semana seguinte. Juliene que tinha tantos sonhos que nunca ia realizar – meu Deus! -, a Juliene que foi enforcada com as próprias calças e teve o corpo exibido em um estádio em Cuiabá, no Mato Grosso, seu corpo nu e negro estirado pros olhos despudorados da população, como na época da escravidão. Como uma mãe vai esquecer uma coisa dessas, mesmo depois de 4 anos?
Durante a entrevista à Revista AzMina, Marlene não demorou a deixar o choro vir, desregrado, e embotar a fala e o pensamento. “Disseram que ela era garota de programa, mas ela não era nada disso! E, se fosse, mesmo assim, quem mereceria uma coisa dessas?”, desabafa. “Ela fazia curso de telemarketing no Senai, não era menina de rua… Linda, minha filha, linda. Ela veio pro mundo só pra fazer nossa vida feliz e foi embora dessa maneira tão bárbara. Ela não fazia mal pra ninguém, eu não entendo o que pode ter acontecido. Parece um crime de ódio, por que isso?”
A dor de Marlene, contudo, não toca o mundo. Não comoveu os investigadores que, segundo ela, praticamente abandonaram o caso há anos. “Não temos influência ou dinheiro, o pai vende joias e eu sou professora. E ainda tem o racismo. A polícia não dá atenção pra crimes assim”, opina.
Um dado do mais recente Mapa da Violência, tão chocante quanto a história de Juliene, também não provocou muita comoção na sociedade. Na verdade, nem sequer fez manchetes nos principais jornais. O levantamento mostrou que, nos últimos dez anos, o número de homicídios de mulheres negras, como Juliene, cresceu 54%, enquanto a quantidade de assassinatos de mulheres brancas caiu 9,8%. Em 2003, quando a raça das vítimas começou a ser informada nos relatórios de crimes, os homicídios de mulheres negras eram 22,9% do total e em 2014, último ano analisado, saltaram para 66,7%. Enquanto a criação de disques denúncia, campanhas de conscientização e popularização do feminismo tornaram o mundo mais seguro para as brasileiras brancas, por que as negras estariam morrendo mais?
Segundo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador de estudos da violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), que faz o Mapa da Violência, é preciso começar a debater a questão derrubando alguns mitos. Um dos argumentos para diminuir o peso do dado, por exemplo, é o de que, na verdade, o que aumentou foi o número de mulheres que se reconhecem como negras ou pardas no Brasil, a partir da popularização do movimento negro. “De fato, no período analisado, cresceu significativamente a população negra e parda de uma maneira que não se justifica pela dinâmica da reprodução, mas pela dinâmica ideológica”, argumenta Jacobo. “Mas nem tudo se explica por esse incremento, pois o crescimento da autoidentificação como preta ou parda no IBGE ainda é muito menor que o crescimento no número de homicídios de mulheres desses grupos.”
Em 2003, o número de pessoas que se declaravam pretas ou pardas no censo do IBGE, era de 47,3%. Em 2013, último ano avaliado pelo Mapa da Violência, o número havia inflado para 53%, ou seja, um aumento percentual de 5,7 o que ainda é bem inferior ao crescimento de 54% da taxa de homicídios entre mulheres de cor negra, como aponta o pesquisador. Restam 48,3 pontos percentuais a serem explicados.
Para Jacobo e outros especialistas ouvidos pela Revista AzMina, a diferença entre os assassinatos de mulheres negras e brancas não pode ser analisada sem levar em conta o racismo. O mito de que o Brasil seria o “paraíso racial” e que teria superado todo o preconceito através da miscigenação impediu, por muitos anos, que informações sobre a cor de pele das vítimas fossem coletadas junto aos relatórios de homicídios. Só na virada do século é que a equipe do Mapa da Violência conseguiu dados consistentes para fazer, pela primeira vez agora, essa análise.
“O que o Mapa da Violência nos mostra, no entanto, é o quanto é enganosa a visão de ‘paraíso racial’: a sociedade brasileira aplica a violência de forma extremamente discriminatória. O homicídio e o feminicídio vêm se reproduzindo entre todas as faixas etárias e grupos sociais, mas com maior intensidade entre grupos de pele mais escura.”
Outros levantamentos comprovam a teoria de Jacobo em relação especificamente às mulheres. Em 2014, o estudo “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostrou que quando estupradas, as mulheres negras têm 37% mais chances de contrair doenças sexualmente transmissíveis do que as brancas – talvez por falta de acompanhamento médico e coquetéis preventivos logo após a violência. “No Brasil, ainda se insiste em acreditar que os males pelos quais passam as mulheres negras são apenas uma questão social e não de uma questão de racismo. Isso não é verdade. Estamos falando de racismo”, reforça Maitê Lourenço, psicóloga que trabalha com o empoderamento de mulheres negras.
Questão de classe
Isso não quer dizer que pobreza não seja parte do problema. Em 2013, último ano do levantamento considerado no Mapa da Violência, o IPEA revelou que o salário médio de pessoas negras no Brasil era R$ 876,40, enquanto brancos ganhavam em torno de R$ 1.517,70. O mesmo estudo monitorou até 2009 a diferença de escolaridade entre mulheres negras e brancas, sendo a média das primeiras 7,8 anos e a das últimas, 9,7. Recentemente, a crise também está castigando mais mulheres negras: de janeiro a novembro do ano passado, a taxa de desocupação feminina geral chegou a 7,9%, mas entre pretas e pardas alcançou os 9%.
Jacobo lembra que, a partir da década de 1990, diante da ineficiência do aparelho de segurança, começou no Brasil a privatização da segurança pública. Como resultado desse fenômeno, quem podia começou a pagar uma segurança privada e quem não podia ficou mais vulnerável. Foi então que entraram em cena os carros blindados, as guaritas de prédio, os sistemas de câmera e cerca elétrica, etc. E a população negra, pauperizada, não pode arcar com nada disso.
“A violência afeta mais a população porque é pobre do que porque é negra. Isso não significa que não exista racismo, existe racismo que se reflete em questão racial e uma questão racial que se reflete numa questão econômica. Elas se retroalimentam para criar vulnerabilidades”, analisa Jacobo.
Para Marlene, mãe citada no início da reportagem, a pobreza e falta de influência política fazem com que polícia leve menos a sério a investigação de crimes cometidos contra mulheres negras. Isso geraria um clima de impunidade e de maior liberdade para agredí-las. A delegada Anaíde Barros, da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), nega a acusação. “As vítimas de homicidios aqui são pobres em 95% dos casos e ainda assim resolvemos 60% deles”, afirma. “No caso de Juliene, usamos todas as possibilidades para investigar o crime, produzimos um inquérito de mais de 2 volumes e estamos muito frustrados por não ter encontrado o agressor.”
Para a ativista negra Luka Franca, existe um processo de genocídio da juventude negra, do qual até a própria polícia participa, em que racismo e pobreza se misturam. O Mapa da Violência vem corroborando essa tese. Em 2014, o levantamento apontou que 53,4% de todos os homicídios do Brasil foram cometidos contra jovens negros. No último ano, o relatório registrou a conclusão: “As taxas de homicídio da população branca tendem, historicamente, a cair, enquanto aumentam as taxas de mortalidade entre os negros. Por esse motivo, nos últimos anos, o índice de vitimização da população negra cresceu de forma drástica.”
De fato, a criminalidade é também maior entre mulheres negras e jovens, mas os crimes tipicamente cometidos por mulheres indicam que são ações que visam o complemento de renda em famílias paupérrimas e, por vezes, monoparentais. “Muitas vezes, as mulheres negras têm que decidir entre ganhar X trabalhando em um emprego não formalizado por horas demais, ou ganhar 2X para traficar, dando melhor condição de vida aos filhos e saindo de um relacionamento abusivo”, explica Luka. Diante da escolha difícil, muitas veem no crime a melhor saída e entram em um mundo em que a violência predomina.
E há ainda um terceiro elemento a ser somado à equação, um fator político. O Datafolha registrou uma mudança nas preocupações da população nas últimas décadas. Até 1996, o brasileiro se concentrava em temas como inflação e geração de empregos. Em 1997, a segurança aparece em primeiro lugar e começa-se a politizar a segurança pública. “O Estado começa a dar segurança para setores formadores de opinião e ignorar os que não são”, diz Jacobo. Perde, novamente, a população negra.
Feminicídio
A universitária negra Suzane Jardim (veja depoimento no vídeo acima) ainda estava na UTI, com o pulmão sendo drenado, respirando por aparelhos, 10 costelas e 40 partes do quadril quebrados, quando lhe disseram que o homem que a havia empurrado da janela do quarto andar do prédio andava espalhando por aí que ela pulou porque queria se matar. Entrou em pânico. Só conseguia pensar que ia perder a guarda do filho por ser considerada “uma louca que não pode cuidar direito de uma criança”. Ainda por cima, a primeira reportagem que saiu sobre o caso, no Jornal O Estado de São Paulo, acusou: “Ativista feminista cai do quarto andar e diz que foi vítima de machismo”.
“Assim, como se eu tivesse escorregado numa casca de banana e resolvido dar de louca depois e não como se fosse vítima de tentativa de feminicídio”, desabafa. Ali mesmo, do hospital, teve que fazer ativismo pelo próprio caso. Acionou as colegas do grupo feminista que começava a nascer na Universidade de São Paulo (USP), onde estudava, e pediu que espalhassem sua versão dos fatos pelas redes e sociais e a imprensa. “Só quando elas fizeram barulho a polícia resolveu abrir um caso”, conta Suzane.
“Eu tenho plena certeza de que, se não fosse estudante da USP, não teria sido ouvida. E veja quantos alunos negros há nas salas da USP: um ou dois numa sala de 40!”
Suzane afirma que o agressor a empurrou pela janela por ela tê-lo criticado por uma atitude machista. Em vez de socorrê-la, o homem correu à delegacia, onde atestou que se tratava de acidente ou tentativa de suicídio. Por sorte, Suzane não morreu, mas perdeu muito. Hoje sente dores o tempo todo, em qualquer posição, anda de bengala e os médicos dizem que ela pode até precisar de cadeira de rodas no futuro. O homem fugiu por um ano e só voltou a se apresentar à Justiça quando Suzane começou a buscá-lo por conta própria, espalhando retratos nas redes sociais. Hoje respondendo pelo crime em liberdade, ele mora a uma quadra de Suzane e seu filho, em Diadema, São Paulo. “Não saio mais pela minha cidade. Acabou essa coisa de tomar uma cerveja ou ir no cinema. Não falo onde vou porque tenho pânico da possibilidade de vê-lo”, ela revela.
É importante ressaltar que nem todo caso de assassinato de mulheres é um feminicídio. O feminicídio acontece quando se trata de um crime de ódio motivado pelo preconceito de gênero. Por exemplo, quando um parceiro mata a mulher por ciúmes ou por achar que ela não tem direito de falar com ele à altura ou criticá-lo, como foi o caso de Suzane. Assim, assassinatos que acontecem no seio de relacionamentos abusivos são feminicídios também.
Mesmo entre essa categoria de assassinato, porém, as negras ainda estão em pior situação que mulheres de pele mais clara. “Enquanto o homem negro é morto principalmente na rua por desconhecidos, a mulher negra é morta em casa, por um parceiro ou parente”, explica Jacobo. “Por isso, é correto dizer que grande parte dos homicídios de mulheres negras são feminicídios. Aproximadamente 35% dos homicídios de mulheres são por ódio de gênero.”
Mas por que mulheres negras se sujeitariam a relacionamentos abusivos mais que as brancas? Porque têm a autoestima fragilizada, explica a psicóloga Maitê. “Existe um problema de representação, pois essa mulher não aparece na mídia, nas telenovelas e comerciais, como padrão de beleza”, opina. “E, quando aparece, ela é representada como uma pessoa violenta, hipersexualizada e pouco inteligente. Isso vai minando sua autoestima e ela se torna mais vulnerável ainda.”
Por serem mais pobres e estarem mais sobrecarregadas com o cuidado dos filhos e parentes velhos e doentes, essas mulheres também estão em maior situação de dependência econômica com relação aos parceiros.
Além disso, Suzane acredita que os grupos feministas não têm dado atenção devida às negras. “Fui mãe aos 17 e moro em Diadema e, neste contexto, não rola contato com o feminismo. Hoje em dia até estão surgindo rodas de conversa na periferia, mas isso é bem recente. Foi só quando entrei na USP que comecei a conhecer essas ideias.” E Maitê complementa:
“O feminismo acadêmico, eurocentrado, não contempla a mulher negra, que vai passar por ele sem que isso agregue quase nada pra ela. E nisso entra a importância de fortalecer os movimentos do hip hop, da periferia, sindicatos e associações de bairro, que são quem, de fato, dá voz a elas.”
E tem solução?
Por ser um problema com raízes em muitos lados, a resposta, segundo especialistas, é também variar as soluções. Para começar, defende Jacobo, é preciso mudar a mentalidade do brasileiro sobre segurança. Para ele, há uma mitologia criada pelos órgãos de segurança pública de que toda a violência é causada pelas drogas e pela criminalidade. Contudo, um levantamento do Ministério Público de 2012, que pesquisou os inquéritos de homicídios em 16 unidades federativas do Brasil, mostrou que isso não é verdade: em 9 estados prepondera o crime cultural e o crime por ódio.
“A consciência dos problemas da negritude sempre foi muito bem manipulada pelo grupo dominante, que convenceu as classes subordinadas a incorporarem essa ideologia sem perceber”, atesta ele. “Você não pode colocar um policial em cada casa e boteco. Isso se supera com mudanças culturais e educação, além de um replanejamento em como cuidamos da iluminação e segurança pública e para quem fazemos isso.”
Para Luka e Maitê, trata-se de uma luta contra o racismo e o machismo que tem que colocar a mulher negra nos holofotes e nos microfones. E Luka conclui: “Quem está sendo afetada de forma mais brutal pelo machismo no Brasil são as mulheres negras e esse debate não pode mais ser um penduricalho do movimento feminista. Tem que ser central.”