E uma chuva de horror tomou conta de mim, da minha esposa e, pelo que vejo na internet, de muitas outras existências nesta quinta. Eis que em meio a minhas leituras diárias, salta sobre mim, esbugalhando meus olhos, uma chamada que diz “Aprovado estatuto que define como entidade familiar a união entre um homem e uma mulher” (ponto final!). E lá vou eu testar minha capacidade cognitiva novamente…
Não é tão difícil provar o quão sem nexo e preconceituosa foi essa sessão ocorrida na Câmara ontem (e menos ainda o inescrupuloso resultado regado a nojentas fotos com sorrisos amarelos de vitória de alguns deputados).
O mundo continua girando, minha gente… Somente nos EUA, segundo estimativa da Escola de Direito da Universidade da Califórnia, um milhão de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais criam atualmente cerca de dois milhões de crianças. No Brasil, não há dados confiáveis sobre o número de casais homoafetivos com filhos – biológicos ou adotados – mas, certamente, tal número vem crescendo exponencialmente (as escolas estão aí para comprovar a necessidade de mudança nos formulários dos termos “pai e mãe” para algo mais verossímil como “responsáveis”).
A aprovação de tal estatuto não apenas garante os interesses da bancada evangélica, com uma manobra horrenda, de “cortar as asinhas da comunidade LGBT”, como também deslegitima a atual realidade familiar brasileira (ou todos habitantes do solo brasileiro que cruzam seus caminhos diariamente possuem uma família doriana formada por papai, mamãe e filhinhos? Ora, faça-me o favor!).
De acordo com o estatuto, devo rejeitar como pertencentes a um “verdadeiro núcleo familiar” o meu primo-irmão agregado, meu tio adotado, minha vizinha viúva que criou o neto ou aquele meu amigo solteiro que deu o sangue para ensinar o que é família para seu sobrinho órfão. Não, eles não são uma família.
Veja então a ironia: com o advento do divórcio direto, por exemplo (ou a livre dissolução na união estável) ambos constitucionais e pertencentes a essa mesma Constituição sobre a qual estamos destrinchando o conceito de “família”, vemos demonstrado que apenas a afetividade, e não a lei, mantém unidas as entidades familiares. Pois bem, AFETO! É ele que faz @ brasileir@ acordar as cinco da matina para garantir sua sobrevivência e a dos seus. É ele que faz valer a pena lidar com todos os problemas que a convivência com outros homo sapiens debaixo dos mesmos poucos metros quadrados nos traz diariamente. E é ele que segura a barra quando a própria justiça – muitas vezes injusta – não nos auxilia na simples tentativa de exercício do que seria nosso direito.
E é aí que eu me pergunto: é apenas vínculo jurídico ou sanguíneo que vai dar tutela a um punhadinho de gente carimbando-o como família?
Então, minha esposa e eu, casadas legalmente e com projetos de continuidade de geração, devemos aceitar que nosso punhadinho de gente que também divide tarefas, que também se auxilia para o crescimento mútuo, que também supera dificuldades, que também divide e multiplica muito afeto simplesmente não se chama família? Pois bem, se tal conceito se tornar verdade absoluta no Brasil, preparem-se oh autores de dicionários, pois além da mudança na definição do vocábulo “família”, uma nova palavra deverá ser inventada muito em breve para carimbar a grande maioria de punhadinhos de gentes brasileiras…