Estou escrevendo isso direto do olho do furacão em Porto Alegre, durante o maior desastre ambiental do meu Estado. O rio Guaíba está com um pouco mais de dois metros acima da cota de inundação. Grande parte da capital gaúcha virou rio. As ilhas do entorno estão submersas. Cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre estão debaixo d’água. Estamos vivendo em situação de calamidade pública.
Minha família está do outro lado do rio, na cidade de Guaíba, onde nasci e me criei. Tenho familiares e amigos que perderam a casa toda. A dor é grande! Acompanhar os resgates e o avanço da enchente de longe é uma angústia enorme. Nunca vivi nada parecido.
Guaíba virou de ponta cabeça e teve que receber também moradores de Eldorado do Sul, município vizinho que foi completamente destruído pelas águas. Dos 40 mil habitantes, 30 mil foram afetados diretamente. Não é exagero dizer que o cenário é de guerra.
Porto Alegre está colapsando. Você anda pelas ruas em um trânsito maluco, as pessoas estão caminhando desorientadas, novos locais sendo evacuados pelo avanço da água, não têm água mineral para comprar e poucos bairros ainda têm água nas torneiras de casa. Eu sou uma dessas privilegiadas. Ainda tenho água, meu prédio não foi atingido pela enchente, e por isso posso estar na rua trabalhando como voluntária.
Os resgates não param. Novos abrigos são montados, pessoas chegam desesperadas, só com a roupa do corpo. Ainda não me acostumei a ouvir tanto barulho de helicóptero e sirenes. Meu coração sempre palpita porque me lembra do horror que está acontecendo. Ao mesmo tempo, sinto alívio por saber que mais pessoas estão sendo resgatadas.
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Nada mais urgente do que ajudar
Eu digito esse texto sem perspectivas reais de melhora, só previsões, contando com a ajuda dos céus e rezando pra essa água baixar. Mas a chuva tem sido insistente em continuar e está esbarrando no despreparo das cidades para lidar com a crise climática que vivemos.
Eu ouvi alguém falar que “estamos no momento agudo da crise” e isso me aterrorizou. Tentar imaginar o que ainda vamos viver, tudo que teremos que reconstruir, quantos vamos enterrar… Quantas fases ainda vamos ter que passar nesse longo processo. Meu Deus!
Nada se tornou mais urgente do que ajudar hoje. Entrar num ginásio enorme para separar pilhas de sapatos foi um alívio por uma noite. Consegui doações via pix para montar kits de higiene, fazer lanches e comprar itens mais difíceis de serem doados: garrafa térmica, café, meias novas, termômetro, fórmula para bebês, pomada para assadura e água de coco (na falta de água mineral).
Eu ainda estou em choque. Oscilando bastante. Às vezes sinto gratidão por minha família estar em segurança. Outras vezes, desespero de saudade e vontade de ajudar os meus conterrâneos. Quando estava preparando lanches para entregar para outros voluntários com meus amigos, eu sorri.
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O que vai sobrar?
Minha garganta engasgou e marejei os olhos em um caixa de supermercado, ao me deparar com o tanto de desodorante que estava comprando para doar – e me dar conta do que eu estou vivendo.
Por aqui, a água ainda vai ficar acima da cota de inundação por, no mínimo, dez dias. Nesse momento ela está descendo para o Sul do Estado, em direção à Lagoa dos Patos, e vai devastar mais cidades no caminho.
O que estamos fazendo com o nosso mundo? O que estão fazendo os governantes e poderosos? Quando a água encontrar o oceano, o que vai ter sobrado em pé no Rio Grande do Sul?