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12 de maio de 2017

Nascem Flores no Asfalto, Capítulo 15: Sorrir amora

A luta de mulheres que resistem que seus corpos sejam reduzidos a ferramentas. "Faz muito sentido isso de Deus ser pai. Se fosse mãe capaz que Ele não abandonava".

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[fusion_text]Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os outros capítulos aqui.

Foto: Carolina Oms

Moço, cê me ajuda a subir na amoreira? Já tentei de tudo para alcançar o galho mais alto, porque lá ficam as amoras mais gorditas e explosivas, mais sardas-nas-bochechas-de-Deus. Acho que durante toda a vida eu quis deitar uma amora no tapete da língua e deixá-la esmorecer os sucos, sorrir com os dentes pintados de vermelho. Não me lembro de ter sorrido estranho uma só vez na meninice. Era cada sorriso limpo, educado, com os olhos modestos pregados no brilhoso dos sapatos, a boca posta numa geometria de gengivas e dentes que chega doía o maxilar. Por que o sorriso dói e a lágrima não? Hein, Moço? É bestagem dizer essas coisas? O Fernando não gosta quando eu falo da amoreira, diz que eu faço troça das coisas urgentes, do real, só para espicaçar com os humores dele, e que se eu inventar de galgar os galhos e arranhar os braços como no outro dia ele manda derrubar a maldita árvore. Ele diz assim: Maldita árvore! E bate com o punho fechado na mesa do gabinete, todo responsudo, a mandíbula quadrática – amaldiçoa como ninguém, o meu marido. Eu o deixo ameaçar a minha amoreira com mordidas profundas de uma serra dentada, deixo mesmo, quiçá gosto desse jeito de acusar gravidade no suco das frutas, de não entender da própria asnice, como nas piadas que contavam para a gente no rádio quando ainda havia piadas para contar no rádio. Lembra não?

Acho engraçada essa mania do Fernando se pintar com as cores da guerra toda vez que os arredores não estão do agrado, como no outro dia, quando ele rumou com o grampeador na parede porque não conseguia obrigá-lo a grampear os relatórios sobre a mesa do gabinete – a mesma mesa em que ele dá com o punho toda vez que eu invento de sorrir amora. Outro dia peguei o Fernandinho dizendo: “Maldita árvore!” com a mesma brabeza do pai, o punho cerrado sobre a mesa da cozinha, o copo de suco saracoteando na superfície de vidro, o suco a ribombar nas paredes do copo, todo ressaca do mar, estremecido pela revolta do meu filho. Ele também não gosta de amoras.

Será que chove, Moço? Espero que não, se cair gota d’água eles me chamam de volta para dentro da casa, ficam preocupadíssimos que eu resfrie do corpo e das ideias. Então faço promessa para Deus reter a chuva nos olhos, digo assim: Ó Pai, se o amanhã desabrochar na formosura do hoje eu passarei a semana de sapatos e dormirei com os pés metidos dentro de meias, do jeito que é devido. Eu tenho gostado mais e mais de zanzar pelo jardim, de tomar sol no cocuruto e dar pitaco no jeito como você poda os arbustos. É a minha oportunidade de tirar os pés da clausura dos sapatos e sentir o macio da grama no meu cotoco, que pode até ser feio e coberto de cicatrizes, mas é sensível ao úmido da terra. Desde que me tiraram os dedos eu fico doida de vontade de ver o meu pedaço-faltante, senti-lo numa pulsação descompensada, aflito para se declarar vivo, mesmo que agora ele esteja mais para pata de cachorro que para pé de moça e eu não possa mostrá-lo ao Fernando e aos miúdos.

(Ah nem, quero saber disso não, pode se livrar dessa carranca despropositada, Moço, fico judiada demais quando você esquece que é jovem e lindo, que conhece os segredos das bromélias, das açucenas também, que é letrado em miudeza.)

Quando o meu cotoco está metido dentro dos sapatos e os sapatos dentro da casa eu fico perturbada pela coceira que a falta dos dedos fazem. Mas, se ando descalça, os funcionários desviam o olhar do meu pé e recuam alguns passos, apoquentados dum tanto que eu tenho comichão de risada, como se, ao invés de tirar os sapatos, eu tivesse aberto as pernas diante deles e para fora da minha racha marchasse uma procissão saúvas esfomeadas, doidas de vontade de lhes beliscar os narizes. “Dona Olívia, mil desculpas, eu não sabia que a senhora não estava calçada!”, “Dona Olívia, a culpa foi minha, eu não bati antes de entrar”, “Dona Olívia, aqui um sapato, não se preocupe, eu vi coisa nenhuma, portanto fique sossegada”, “Dona Olívia, não deveria andar descalça pela casa, e se as crianças a virem assim?”.

Além de ter dado ordem aos funcionários que não me deixassem a sós com o meu cotoco, dia desses Fernando declarou que um empresário podre de rico – desses que decidem os giros do mundo em equações gulosas e, com movimentos mínimos de cabeças e papadas, governam quem nos governa – entrou em contato com ele e disse que gostaria de financiar a campanha dele para vereador das gentes. Para provar amizade de interesse – escuta essa, Moço, e me diz se não é um balneário de excrescências, a vida nossa – o empresário todo pirocudo propagandeou ao meu marido que havia incumbido um laboratório inteiro de pesquisa a parar tudo que fazia e desenvolver dedos de pé para me encobrir o cotoco. Eu disse assim: “Fernando, que crime cometeu o meu cotoco para vocês quererem tanto encobri-lo, coitado?”, ao que ele respondeu que a minha pata de moça era tão inocente quanto são os pelos nos sovacos das mulheres. Eu calei na hora.

Bastou Fernando mencionar os meus pelos sovacais para me dar uma vontade de rir até dobrar o corpo, até molhar as calças e arfar rouquidão. Aquilo era deliciosamente escandaloso, tão absurdo que, se mamãe estivesse viva e externada do túmulo, daria com os tamancos na minha fuça, diria que fez de tudo para domar as minhas porquices e maleducâncias, para me ensinar maior etiqueta, melhor prumo, e que, mesmo depois de morta, eu dispensava pudores e fazia troça com os muitos esforços dela.

Não me chame de besta, Moço, saiba que segredaram de mim muitas coisas. Eu achava bonito isso de me imaginar esbelta e perfumada à espera de um marido, a folhear revistas com unhas carmesins enquanto o cheiro de um assado deslizaria pela sala com a cadência de uma valsa. Fui ensinada cedo na vida que as mulheres deviam fazer o possível para derramar água de colônia e cera quente sobre os pelos e as excrescências quando intuíam o aproximar do marido, em um acobertamento total de peidos, arrotos e ganidos no trono. Engraçado, quando a gente assunta coisas assim obscenas eu teimo de lembrar a época em que conheci Fernando, talvez porque essa danação da língua ofenderia em muito a Olívia-moça, que fecharia os olhos e viraria a cara, magoadíssima, como se tivesse acabado de ver o meu cotoco.

Não diga bestagem, Moço, adianto que a Olívia-moça nutria de um desinteresse genuíno pelas flores, ela não faria mais do que te acenar adeus à distância, não prestaria um comprimento sequer. Mas não fique brocoxô, largue disso, sei que, em segredo, ela concordaria comigo que o avelã dos seus olhinhos é de uma lindeza que faz a gente respirar mais fundo. É que me faltava apetite para as pontas e as quinas, sabe, para as bizarrices cotidianas. Eu só queria saber de borrifar perfumes no corpo e amenizar o oco da fome com amêndoas e cenouras picadas em pedaços passarínicos.

Nutria secreta fé que o Fernando me acreditava careca e lisa em todos os recônditos, perfumada de sina, e que cairia estupefato caso se pusesse a imaginar que toda semana eu derramava cera escura sobre a minha virilha e extirpava da pele as raízes de uma penugem escura e grossa, que crescia na rebeldia de hera. Então imagina a minha vontade de rir quando ele disse: “Pelos do sovaco!”, como quem resgata uma sabedoria antiga, mitologia das mais raras. Eu respondi assim, com a boca redondinha: “Fernando, e você lá gosta de sovaco de mulher?”.

Você faz perguntas demais moço, eu fico é saudosa da época em que você calava diante da minha presença. Lembra o dia em que você finalmente percebeu que a minha barriga crescia e se pôs horrorizado ao me descobrir fertilizada como a terra que você modela no macio dos dedos? Não me farto de rir da sua crendice, Moço, ficou foi todo amargor, parece até que me tinha em conta como querubim e não como mulher, teimava em esquecer-se de onde saíram os outros filhos, de onde escorre o moloso vermelhusco todo mês. Mas esses tempos de beatice acabaram, já vi, agora está todo abusado das vontades – fala pelos cotovelos, tem sanha de fazer troça comigo e nem mais na amoreira sobe para colher as frutas do galho mais alto, as gorditas peludas, sardinhas-de-Deus.

Dizem na cozinha que você arranjou namorada, Moço, que se pôs tão gaiato de amores por ela que outro dia aparou as rosas e aguou os espinhos do canteiro. Mas eu não me dou a essas picuinhas de área de serviço, não senhor, mamãe me ensinou melhor. Ela dizia assim: “O mais sabido é se fazer de desentendida, Olívia, agir como se o bem maior do mundo fosse a atenção de um homem. Deve tratar tudo que escapa da redoma do lar com alheamento, uma preguiça caprichosa, como se a sua vista só se estendesse até onde quinquilharias coloridas refratam os brilhos”. Assim fiz. As ofensas todas que me dirigiam – e eram muitas, a maioria transvestidas de piadas – arrancavam gargalhadas das gentes e me forçavam a abrir sorriso. Agradecia com voz de criança quando me elogiavam o azul dos olhos, perdoava os pares de mãos que roçavam a minha pele antes mesmo de professarem desentendimento, como se fosse a seda de uma blusa que acariciavam na megalomania do toque, tecido inabitado.

Chamam-me de dentro da casa. Decerto encontraram os meus sapatos na varanda e querem lavar meus pés e envolver o vermelho do cotoco em gazes e ataduras, devolvê-lo às sapatilhas, posso sentir que ruminam possibilidade de equilibrá-lo dentro de saltos assim que pararem de latejar. Verá como estarei emperiquitada mais dia menos dia, caricatura da Olívia-moça, aquela que gostava de borrifar perfume no corpo, como se envelhecer não passasse de uma sugestão – declinada. Gostam mesmo de embalsamar as gentes por aqui, capar-lhes as papadas, os culotes, esticar-lhes a peles, anestesiar-lhes as vontades.

Talvez gritem por mim lá de dentro da casa para dar notícia que Tomazinho encheu os pulmões de ar e entoa grito agudo de sirene, pois acaba de despertar de um sonho pesadeloso, no qual ele era um homem feito e eu, uma velha. Quiçá no sonho do meu filho – que, avançado na idade, estaria de barba feita e camisa social, com pés enormes dentro de sapatos lustrosos – ele chorava em desamparo glutão, na sanha dos recém-nascidos e, tomado pela fome, engatinhava até o meu colo, um colo murcho, onde procurava os meus seios e só encontrava leite em pó. Meus dentes estão manchados de amoras?

__

Senhora Olívia?

Pois não.

A senhora tem tido dificuldade para dormir? Para se dedicar às tarefas do lar? Sente-se irritada em demasia, com paciência curta ou sem ânimo para tratar com as crianças?

Tenho dificuldade somente em obedecer as gentes da casa e ficar com os pés metidos dentro dos sapatos durante o dia e, antes de me deitar com Fernando na cama nossa, calçar meias grossas, porque me apetece em muito olhar para o meu cotoco. Ah, também tenho dificuldade para tocar o cotovelo com a ponta da língua.

Senhora?

Aqui, vê como é difícil? É tudo muito difícil. Moço quase consegue, uma vez eu disse que os ossos dele são de borracha, nunca vi tanta flexibilidade, deve ser esse negócio de estirar o corpo em direção ao galho mais alto da amoreira. O senhor consegue tocar o cotovelo com a ponta da língua?

Senhora, presto visita por que o seu marido transmitiu algumas preocupações. Disse que desde o acidente na escola dos miúdos a senhora dá mostras de humores descompensados, que anda de quatro pelo carpete da casa em imitação de jumento e deixa as crianças montarem-lhe as costas, que relincha e dá coices no ar. Ele também relatou que a senhora se recusa a dar o peito ao mais novo e que, quando não está no jardim metida em conversas com o moço que trata da terra e das bichezas da casa, fecha-se no escritório do doutor Fernando e sobe em uma escada dobrável até alcançar a prateleira mais alta, onde procura livros de poesia. A senhora sabe o que dizem sobre os poetas. Quer ser associada a esse tipo?

O senhor sabe, doutor, li em uma revista uma vez que com as gentes assim constipadas, desconfiadas das próprias sombras, é normal dar de encontro com as quinas da realidade. A gente se põe mesmo atazanado das ideias. Então me sinto chamada a escrever versinhos. Um morno volumoso mora no meu peito – às vezes ele evapora e paira acima de mim como ar rarefeito, e às vezes esse morno-volumoso-rarefeito sou eu mesma. Quando a maravilhança acontece, subo até a mais alta das alturas e despenco de uma só vez, abismos trespassam os meus braços. É muito grande a alegria da queda.  Outro dia eu pensei assim: “Uma borboleta sem asas/ nas asas de um drone”. Imagine só, doutor, que escândalo!

A senhora me quer comunicar que está preocupada com a situação do país, dona Olívia? É isso?

Não seja besta, doutor, estou preocupada é com a situação da jeba de Fernando. Ele anda tão afobado das vontades que hora dessas vou ter que esconder as almofadas da casa.

Senhora!

Não se apoquente, sei bem que esse assanhamento de Fernando é político, e não maridal. O interesse dele em meter ligeiro é fabricar outro miúdo em tempo otimizado e noticiar à imprensa que eu não me farto de parir filhos aloirados, e que esses filhos – contanto que sejam homens – terão seus nomes inscritos em tratados mui memorosos e em planilhas bojudas, porque nasceram para patrão. Uma vez que o nosso próximo filho tiver consumado a obrigação de nascer e a minha cintura for envolvida por cintas elásticas, eu e as crianças subiremos em palanques altíssimos e confeitados na mira de um sol cru, sorrisudos e cercados por câmeras – mas longe das bocarras dos microfones. Doutor, eu tenho pensado. Faz muito sentido isso de Deus ser pai.

Porque diz isso, senhora?

Se fosse mãe capaz que Ele não abandonava.

Dona Olívia, o que acha de te livrarmos desse engalfinhamento de ideias? Desse descompasso dos humores? Muitas mulheres recorrem aos doutores d’alma para reaver bocados de si, às vezes o corpo nosso entra em desacordo com a mente, é um desses efeitos que não conhecem causa, mas que podemos corrigir sem grandes esforços com comprimidos mínimos, insossos, que mal são sentidos na garganta durante um gole demorado de café, coisa besta. Explico desse modo, para a senhora não se impressionar demasiado: o desvario d’alma é algo na ordem de uma perna quebrada que se cobre de gesso para, semanas depois, deixar o domínio das ataduras e amparar o resto do corpo, pronta para empreender novos saltos, quiçá mais altos que os antigos.

Vai engessar o meu cotoco, doutor? Está esperançado que assim me cresçam novos dedos?

Dona Olívia, tem visita para a senhora.

Quem?

Não conheço a rapariga, veio com um miúdo da idade de Tomazinho dependurado nos braços e se apoquentou quando eu disse que se ela quisesse ter com a senhora teria que esperar do lado de fora da casa. Esbravejou desaforo até se fartar da minha cara, chega corou nas faces, a moça. Eu diria que não parece boa coisa, mulher prestimosa não sai de casa com filho nos braços para caçar encrenca com gente direita.

Senhora, preciso que se atente à nossa conversa para que possamos iniciar o tratamento. Deixe as picuinhas de lado, sim?

Dona Olívia, mando a moça entrar?

Manda embora.

 

 

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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