A Corte Interamericana de Direitos Humanos começa a discutir hoje a responsabilidade de El Salvador sobre as violações de direitos sofridas por Manuela*, uma mulher de 33 anos que teve sua vida interrompida pela criminalização do aborto. Em 2008, Manuela vivia na zona rural de El Salvador com dois filhos pequenos, quando, no terceiro trimestre de sua terceira gravidez, sofreu uma emergência obstétrica que resultou em uma hemorragia severa e desmaio. Levada para um hospital, a equipe de saúde a tratou como se tivesse provocado um aborto, e a polícia foi acionada. O resultado foi um processo penal que a condenou a 30 anos de prisão por homicídio agravado, uma manobra jurídica perversa para enquadrar em crime mais grave a culpabilização de Manuela por uma fatalidade de saúde.
No cárcere, Manuela foi diagnosticada com um câncer linfático em estágio avançado, provavelmente responsável pelas dores severas no pescoço das quais ela se queixava mesmo antes da gravidez. Seu corpo adoecido não havia sido diagnosticado antes, tampouco o foi no hospital que a denunciou por um aborto sem provas. Manuela também não teve acesso aos cuidados médicos necessários para reverter a gravidade de seu estado de saúde e faleceu na prisão, sem chance de se despedir de seus filhos, tornando-se mais uma vítima de um sistema que criminaliza e coage as pessoas que gestam, impedindo o exercício pleno do direito à saúde.
Dois anos após o falecimento de Manuela, e após derrotadas tentativas de garantir justiça para seu caso no próprio país, sua família buscou o acionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, com suporte das organizações Centro de Derechos Reproductivos e Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Aborto, as quais demonstram as diversas violações de direitos humanos sofridas por Manuela, e demandam a responsabilização do Estado salvadorenho. Em 2017, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aceitou que o caso fosse a julgamento em sua Corte, entendendo que, além do Estado não haver fornecido proteção judicial para Manuela e sua família, também violou outros direitos, como o acesso à saúde.
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O julgamento que se inicia hoje marca um momento importante na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos na América Latina e Caribe, visto que a Corte pode se pronunciar sobre a responsabilidade de um Estado pela discriminação de gênero que as mulheres na região sofrem devido a leis restritivas, que efetivamente levam à morte, encarceram e impedem mulheres e meninas de desfrutarem de uma vida digna. Em momentos anteriores, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se posicionou favoravelmente à preservação da integridade e dignidade de meninas e mulheres, como nos casos XX vs. Colombia, LMR vs Argentina e KL vs Perú, LC vs Perú e Paulina del Carmen Ramírez vs México, e tantos outros.
A América Latina e Caribe é hoje a região com leis mais duras sobre interrupção de gravidez no mundo. Cinco países da região (El Salvador, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Haiti) não permitem o aborto em nenhum caso. A Organização das Nações Unidas estima que, a cada quatro abortos que ocorrem na região, apenas um é realizado de forma segura. As leis altamente restritivas comprometem o bem estar e a saúde, resultam em encarceramento arbitrário como no caso de Manuela e, segundo a Anistia Internacional, configuram-se como uma institucionalização da violência contra as mulheres.
O pronunciamento da Corte, iniciado na semana do 8 de março, marco internacional da luta pelos direitos das mulheres, é imprescindível para evidenciar as violências cotidianas que a estigmatização da saúde sexual e reprodutiva promove na vida das latino-americanas. Em um momento de fragilidade dos serviços de saúde pública em decorrência da pandemia da Covid-19, torna-se ainda mais urgente cuidar e proteger meninas e mulheres, e evitar que mais mortes aconteçam. A Corte Interamericana tem a chance de instigar mudanças estruturais na região, para que outras pessoas não sejam submetidas à mesma violência que Manuela e tantas outras, que perderam suas vidas pela criminalização.
* Manuela é o nome fictício usado no julgamento, para proteger a identidade da mulher.