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2 de abril de 2024

O coletivo é minha sobrevivência

Sou mulher preta de periferia lutando por outras iguais a mim

Nós fazemos parte do Trust Project

Marizete Pires coletivo
Arte: Giulia Santos (Foto: arquivo pessoal)

*Alerta: esse texto contém relato de violência contra a mulher

Quando eu tinha 13 anos eu sofri violência física e sexual dentro da minha casa, pelo meu próprio irmão. Eu tenho 18 pontos na cabeça e uma perna quebrada. Mas já passava por outros tipos de violência, como a psicológica e patrimonial. Foi difícil entender tudo isso e eu me sentia culpada. 

Tracei um longo caminho para entender que aquilo era uma questão do sistema patriarcal, que é nocivo. Ainda teve o peso do corpo de uma mulher preta sofrendo essa situação em um sistema racista. Mas só tive consciência disso depois.

Eu vivia numa casa pequena com dois quartos, dividindo com sete irmãos e duas irmãs. Meu pai morreu quando eu era criança e minha mãe era sozinha, semianalfabeta, cuidando de dez filhos. Ela acabava falando que não deveríamos responder às atitudes machistas. Minha mãe se abnegava, mas ela fez isso pra educar a gente. O sistema patriarcal acaba fazendo isso com as mulheres, fazendo-as reproduzi-lo.  

Sofri muito, e por isso saí de casa aos 14 anos de idade. Como diz a música, eu já morei em tantas casas que nem me lembro mais. Fui ser faxineira, diarista, passei por importunações. Porém, minha mãe adoeceu e eu tive que voltar pra casa (em Salvador) para cuidar dela, e o meu agressor sexual continuava lá. 

Eu fui desacreditada, e, mesmo prestando queixa, precisava da assinatura da minha mãe por eu ser menor, mas ela não assinou. Não assinou porque ele era a pessoa que mantinha a casa. Ela também é vítima. 

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A sororidade

Então, prestei concurso para agente de saúde em Salvador e passei. Nas minhas visitas nas casas, eu conversava com as mulheres, e não tinha receio de falar o que eu passei. Sempre fui militante, ativista. Dentro de mim, sempre tive essa vontade de lutar, nunca foi: “vou me acomodar”. Enquanto eu ouvia as mulheres, eu sabia que tinha que fazer alguma coisa. É isso que a gente chama de sororidade, uma irmandade entre as mulheres.

Idealizei o coletivo “Mulher Por Mulher”, chamei agentes de saúde e falei que poderíamos ajudar melhor a partir da escuta, para que as mulheres saíssem do ciclo da violência. Elas precisam entender primeiro que estão passando por violências, e que aquilo não é normal. 

Nós fazemos rodas de diálogo com as mulheres junto a psicólogos, e temos no coletivo conselheiras tutelares, porque temos meninas e idosas – elas também sofrem violência. 

Leia mais: Cada passo importa: mulheres contam como romperam com relacionamentos violentos

Escuta que salva 

O coletivo foi idealizado por mim, mas abraçado por toda Salvador. Estamos em vários municípios. Quando o coletivo entra e faz a escuta, já serve como testemunha para essa mulher. 

Eu fico agoniada quando eu não consigo fazer alguma coisa. Mas eu não tive quem me ouvisse, e hoje essa é a minha vida, ouvi-las, eu gosto de ajudar. Já fui em várias oitivas, fui testemunha, e tenho projetos com homens, pra conversar com eles também, porque a gente precisa desconstruir. Não tenho mais o peso de dizer que sofri violência.

Eu perdi meu marido e, em menos de três meses, perdi minha mãe. No meio disso tudo, descobri que estou soropositiva – mas indetectável. Eu chorei, mas fui pra luta. Agora, até faculdade eu vou fazer na UFBA (Universidade Federal da Bahia). 

É um turbilhão de coisas, mas me sinto bem, quero deixar um legado. O capitalismo é perverso, mas eu busco o nós por nós. E o nosso é ser mulher preta de periferia lutando por outras iguais a mim.

*A analista de comunidades d’AzMina Natali Carvalho entrevistou Marizete Pires para construir este texto em primeira pessoa.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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