Toda sapa neste mundo já ouviu a piada do segundo encontro e o caminhão de mudança pro casamento. Que sapatão fica uma vez e na semana seguinte já está casada, já adotou dois gatos e está na internet procurando dicas de inseminação caseira. Que uma relação de dois anos vale por dez se contada em anos sapatônicos. Que rola simbiose. Que vão ficando parecidas. E quando terminam, dividem o mundo sapatão ao meio, criando uma terceira guerra mundial entre as partidárias da fulana e as partidárias da sicrana. A coluna deste mês tem alguns palpites sobre os porquês dessa dinâmica.
Começando pelo óbvio: quando conhecemos alguém e o papo é bom, o beijo é bom, o sexo é ótimo, por que não grudar na pessoa 24/7, dormir de conchinha, acordar juntinhas, fazer almoço dando risada na cozinha, parando pra beijar e transar nos horários mais doidos? Isso não significa que lésbicas não façam sexo casual, não fiquem solteiras e trepadeiras. Não existe um gene casadoiro no DNA sapatão.
Há afeto, tesão, segurança em dividir a vida, vontade de ficar juntas.
Mas há também aspectos menos óbvios da lesbofobia que nos empurram para casamentos repentinos, em especial quando somos mais novas e pertencemos às classes menos privilegiadas. Sair de casa em uma sociedade majoritariamente lesbofóbica é quase um imperativo. Isso significa, muitas vezes, poder beijar, namorar, ter DR sem ter que explicar dez vezes pros pais, pros irmãos, pra tia, pra vó, que aquela “amiga” é uma namorada e que a relação de vocês é a mesma relação de amor que heterossexuais têm. Sem contar que esse movimento significa, muitas vezes, a escolha de não apanhar, não ser submetida à cura psicológica ou religiosa, não ser trancada em casa e não ter o dinheiro cortado ou os documentos sequestrados.
Mulheres são mais pobres que homens, de uma maneira geral. Segundo o IPEA, ganham 30% a menos para fazer os mesmos trabalhos e ocupam os postos mais precarizados. Já que na casa dos pais não dá para exercer a sexualidade em sua plenitude, vamos juntar nossas bolsas de pesquisa da graduação, nossos salários do telemarketing ou nossa merreca como balconista da loja de departamentos e viver no nosso ninho de amor sáfico por aí.
Quantas mulheres, lésbicas ou não, ainda são criadas para o casamento, para o ambiente doméstico, para o “até que a morte nos separe”?
O espaço público não foi feito pra nós, não é seguro para a relação lésbica. Ter nossa casinha, decorada como a gente quer, com a senha do Netflix pro sábado à noite, nos garante mais um dia vivas, sem violência ou estupro corretivo.
E para sair, vamos pra casa de outro casal sapatão, pro churrasco das sapas do futebol de quarta-feira, viajar pra aquela praia quase deserta com mais três casais lésbicos.
Outro ponto a se considerar é a efemeridade de muitos casamentos lésbicos. Há os que duram anos e deixam de lembrança aquelas fotos de duas velhinhas fofas de mãos dadas podendo, finalmente, oficializar o seu amor em um cartório. Mas, em muitos casos, pela pressão social da lesbofobia que nos aponta um casamento como uma chance de respirar fora d’água, depois de um ano, dois, nos separamos.
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Esse texto não é um libelo anticasamento, de forma alguma. É um palpite sobre a extensão da lesbofobia em nossas vidas, de como temos tantos direitos negados, inclusive o de construir intimidade e laços profundos com nossas namoradas, suas famílias, seus amigos, em público e notoriamente. O direito de termos tempo para nos descobrir e nos conhecer.
Existem, com certeza, outras maneiras de nos relacionarmos, uma maneira sapatão não simbiótica, onde possamos ficar, namorar, amar sem que nos tornemos uma só pessoa, sem que o casamento seja um refúgio de um mundo misógino e lesbofóbico.