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9 de maio de 2024

“Imagina uma casa que tá cinco dias embaixo d’água” 

"Às vezes a gente começa a lembrar como era a nossa rotina antes. Sabe quando sua vida é tão tranquilinha? Agora é força para recomeçar onde quer que seja"

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canoas
Arte: Giulia Santos

O que nós estamos vivendo no Rio Grande do Sul é apocalíptico. Chove ininterruptamente. O governador foi na TV dizer que seria a maior catástrofe da região, mas ninguém imaginou que seria do tamanho que foi. Como moro há 20 anos em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, a gente sempre ficou meio que afastado desses desastres climáticos porque não é serra, não é vale, é uma região plana, nunca nos aconteceu nada. Tenho vizinhos que estão ali há 50 anos e eles nunca viram algo parecido. 

Acontece que o Rio Grande do Sul é cercado por rios e com essa chuva na serra começaram os problemas. Em setembro do ano passado, teve um caso bem sério nos municípios de Roca Sales e Muçum, que foram destruídos pelas inundações. Foi muito triste porque as pessoas começaram a se erguer e reconstruir sua vida e, oito meses depois, aconteceu de novo. 

Essa água que choveu na serra começou a descer pelos rios, como o Guaíba, que passa na capital Porto Alegre. A região oeste de Canoas, parte mais baixa da cidade, é linda e antiga, concentra a parte cultural e histórica do município. Foi lá onde tudo começou, os prédios públicos, postos de saúde, tudo inundou.

Temos em torno de 6 bairros nessa região, todos ficaram alagados. Foi tudo muito rápido. Eu cheguei em casa do trabalho, a água tava na calçada e os meus vizinhos ainda estavam no portão falando “ah, mas não vai acontecer”. Passaram 40 minutos, a água já tava no meio do meu pátio e eu só consegui pegar as minhas filhas, uma mochila com roupas, os documentos e dois cobertores. Se a gente não saísse naquele minuto, não sei se eu estaria aqui hoje para contar história. 

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“É o próprio homem que está fazendo isso”

A gente foi para casa da minha cunhada que é do lado mais alto da cidade. Meu esposo tentou voltar em casa para tentar pegar alguma coisa, mas não conseguiu. No outro dia, a água estava 1 metro acima do telhado, em todos os bairros da região. 

As pessoas não acreditaram que a água ia subir e eu tenho certeza que tem muita gente que não teve tempo de sair. É muito triste pensar que a gente vai voltar e não ver alguns vizinhos. Cachorros foram deixados em casa porque as pessoas não tinham a dimensão do que aconteceria. O prefeito de Canoas disse que em torno de 60 dias a gente pode começar a voltar para casa para ver se a água escoou. O Rio Grande do Sul está destruído, infelizmente.

Em 2019, quando o governador entrou, eu lembro que ele fez algumas mudanças para olhar as questões climáticas. Mas de lá pra cá, essas políticas deixaram de ser preservadas, então isso tudo tem a ver com os eventos climáticos.

Esses desastres estão aí nos mostrando que é o próprio homem que está fazendo isso. Parece que é só “um agrotóxico que tu libera ali e não vai dar problema nenhum”, mas no geral, o acúmulo disso tudo tá destruindo vidas. Infelizmente, é a população que sofre, e dessa vez pegou todos de surpresa: rico, pobre, pessoas que moram nas ruas. 

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Acolhimento traz força para recomeçar

Recebi o convite para sair do estado. Eu não pensei duas vezes. Preferi tirar minhas filhas dessa situação tão devastadora e sem perspectiva. Peguei um avião da Força Área Brasileira (FAB) e vim para o Rio de Janeiro. Meu esposo ficou e as minhas cunhadas também, para ver se conseguem recuperar algo. Mas as previsões climáticas não são boas para o momento. Este final de semana o governador já veio a público dizer que vem mais uma quantidade grande de água. 

Saí do estado porque vai que acontece uma coisa pior? Temos seis barragens em alerta com rachaduras e, se essas chuvas atuais a fizerem desmoronar, não consigo nem mensurar o tamanho da catástrofe. Eu não quis correr o risco de ficar no Rio Grande do Sul, porque uma coisa é eu conseguir me salvar, outra coisa é salvar as crianças. 

Vou para Bahia, onde está o restante da minha família, mas eu não sei se vou ficar, se vou voltar para reconstruir minha vida em Canoas, porque vai levar muito tempo. Tenho recebido muito apoio da família, de amigos, não consigo agradecer o que eles têm feito por nós. Pessoas que nem me conhecem fazem vaquinha para tentar amenizar um pouquinho desse impacto, afinal nem sei se a nossa casa tem estrutura para morar mais. Imagina uma casa que tá cinco dias abaixo d’água. 

Acho que as orações têm nos sustentado de pé, porque às vezes a gente começa a lembrar como era a nossa rotina antes. Sabe quando sua vida é tão tranquilinha? Agora é força para recomeçar onde quer que seja. Recomeçar, essa é a palavra do momento.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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