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Filhas de criação ou escravizadas? “Nem sei dizer se tive infância”

Depois de anos de exploração, Jô conseguiu redesenhar o futuro

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Divorciada, 42 anos, Josiane*, a Jô, mora no Pará com os três filhos. Hoje, ela é funcionária pública concursada e trabalha em uma escola municipal. Mas sua juventude foi marcada pela exploração do trabalho infantil.

“Nem sei dizer se eu tive infância”, conta com os olhos cheios de lágrimas, lembrando que não cresceu com os seus irmãos. Jô tinha cerca de 7 anos quando chegou à casa da família Viera sem qualquer noção do que estava acontecendo. Sabia apenas da decisão da sua mãe, de que iria morar com pessoas que, supostamente, cuidariam dela e lhe dariam condições para uma vida melhor. 

Sem questionar, pegou uma balsa da comunidade onde sua família ainda vive em direção a Belém. Os períodos que passaram juntos eram as “férias” do trabalho na casa da família Viera*. A mãe também foi vítima de exploração infantil, e não chegou a conhecer os próprios pais. O ciclo de vulnerabilidade se repetiu com todas as filhas. 

Ao mesmo tempo em que foi acolhida pela família, começou a receber obrigações na casa: lavar, varrer, dobrar, cuidar das outras crianças… Além dela, havia uma diarista, que dava “uma geral” na casa.

“Até meu nome eles trocaram

Jô virou Josi, apelido que não conhecia. A dona da casa, Marta*, era exigente, e passava conferindo o “serviço”. Ainda criança, Jô começava o dia lavando o pátio e varrendo a casa. Depois, limpava os móveis. “Ela vinha com o dedo e passava em todas as coisas. Se viesse uma poeirinha, ela me chamava e falava que era pra limpar tudo de novo”. 

Essa temporada em Belém começou no fim da década de 1980, e durou mais de 12 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que protege os direitos das crianças, só surgiu em 1990. O trabalho infantil doméstico foi incluído na lista Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP) apenas em 2008. 

Jô não recebia pagamento pelo serviço na casa dos Viera, a situação exploratória era mascarada com pequenos agrados. Nos primeiros anos, ganhava brinquedos quando viajava para a casa da família. Também era vestida como uma princesa, ao menos para sair de lá. “Ela fazia umas blusas de manga bufante e uns vestidos estilo jardineira, que tinham aquelas saias rodadas. Eu me sentia a Cinderela”. 

Os “momentos de princesa” não eram suficientes para encobrir os medos da infância, como o do escuro. Só era permitido acender a luz se algum membro da família estivesse no cômodo. “Eu tinha que ficar no quarto escuro, eu não via nada. Eu ficava com pânico”. Jô dividia o quarto com a filha de Marta, Laura*, seu marido e os dois filhos do casal. A família se dividia entre camas e redes, e a menina dormia num colchão no chão. Quando Laura se mudou, Jô foi “passada” para ela, e era responsável por todo o serviço doméstico da nova casa. 

Tratada como objeto

Jô ficou ainda mais sobrecarregada. Além do trabalho doméstico, cuidava também da padaria em um dos vários postos de gasolina da família, mas sempre sem remuneração. 

Já adulta teve vontade de ter o próprio dinheiro. Um dia, passou em frente a um supermercado e, sem pensar muito, perguntou se estavam contratando. Ela aceitou fazer um mês de experiência, mesmo antes de saber como dar a notícia à patroa, que disse: “Tu vais trabalhar em um supermercado? Tu queres ser explorada?”. Jô ainda se lembra da resposta que queria ter dado, mas ficou só no pensamento: “Eu vou receber pelo meu trabalho”. 

No começo, acumulou as duas funções. Antes do nascer do sol, abria a padaria e organizava tudo. Depois, corria para pegar o ônibus e chegar ao supermercado às 7h30. Quando recebeu seu primeiro salário, ouviu de Laura que deveria comprar seus produtos de higiene, já que tinha o próprio dinheiro. E eis que veio a gota d’água para dar fim à vida dupla: a família começou a usar o que Jô comprava com seu salário.  

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Ela quebrou o ciclo de 12 anos de exploração da família Viera para morar com uma tia. Ao informar que ia embora, ouviu da patroa que, a partir daquela data, acabara a “irmandade”.

No período em que foi explorada, Jô foi afastada da sua própria família, e os intervalos entre as visitas se tornaram cada vez maiores. Ela se emociona, dizendo que tem poucas memórias da mãe, e quase todas do fim da vida, já doente. Ela tinha 16 anos quando a mãe recebeu o diagnóstico de câncer no estômago, e, com isso, decidiu cuidar dela. Mesmo tendo ressentimento por ter sido entregue pela mãe para outra família, Jô não sente mágoas. “Não a culpo. Entendo que ela queria dar uma vida diferente para as filhas. Diferente da vida no interior”. 

Reconexão com a própria história

Depois de um ano em seu primeiro emprego formal, voltou mais uma vez ao interior, dessa vez para cuidar do pai, que também teve câncer no estômago, mas sobreviveu. De volta a sua cidade natal, terminou o Ensino Médio, passou num concurso público para auxiliar de serviços gerais e teve três filhos. Hoje, é agente de portaria numa escola da cidade. 

Herdou do serviço doméstico problemas na coluna, que ela acredita serem fruto do trabalho pesado na infância. Mas conseguiu dar aos filhos uma realidade diferente da sua, tanto material, quanto afetivamente. “Me pego chorando, porque não tive isso com a minha mãe. Penso que por ela não ter tido isso, ela não fez com a gente”. 

O filho mais velho passou em quatro universidades públicas e cursa Engenharia Civil. Ela quer formar os três. Mas, antes disso, promete terminar a sua faculdade de Serviço Social iniciada em 2015. 

Em casa, as tarefas são divididas, mas sem imposições, nem para ela mesma, que diz não gostar de fazer nenhum serviço doméstico. “Hoje é tudo assim: quando eu quiser”. 

O elo criado pela exploração é forte e Jô ainda visita os antigos patrões. “Acho que nunca entendi direito o que aconteceu comigo. Que o que eu passei lá não era legal”.

*Nomes fictícios para preservar a entrevistada.

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