
Para essa edição, conversamos com Izabela Santos, doutora em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP) e Engenheira Ambiental pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). A paraense concentrou seu caminho desde a faculdade na área ambiental, com ênfase em pesquisa-ação.
Seus primeiros estágios foram em iniciação científica, mas faltava entender como aqueles temas atingiam a sociedade. Por exemplo, “qual a importância do que via em laboratório para os agricultores?” Em busca de uma pós-graduação que trouxesse essa visão, encontrou o programa da USP, onde foi aluna especial até chegar ao mestrado.
Sua infância parece ser a chave para o interesse pelo meio ambiente. “Algumas coisas da minha vida me fizeram gostar e me identificar com o meio ambiente. Na escola que eu estudava, com 10, 11 anos, uma professora de Geografia passou um filme sobre o Chico Mendes. Apesar de todo o horror sobre a história, eu fiquei tocada. Lembro muito desse momento”.
Enquanto mulher negra, a pesquisadora também passou por dificuldades em sua trajetória acadêmica. “Homens já falaram que eu não ia demorar na pesquisa, porque eu era uma mulher bonita, e mulheres bonitas não fazem pesquisa”. Situações como essa abalaram a confiança de Izabela como pesquisadora, mas também enquanto mulher. “Eles [homens pesquisadores] não acreditam em informações ou dados que você [pesquisadora negra] apresenta”, afirma, contanto que foi em sua trajetória de pesquisa sobre o racismo ambiental que se compreendeu uma mulher afro latino-americana.
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AzMina: Como você define o racismo ambiental, e de que forma ele impacta os grupos mais vulneráveis da sociedade?
Izabela Santos: Eu definiria o racismo ambiental como a desproporcionalidade dos impactos ambientais, talvez não só deles. Tem a sobreposição de outras estruturas que afetam de forma desproporcional a população negra. No Brasil, quando você começa a estudar determinados contextos, percebe uma grande correlação entre a localização de grandes empreendimentos, destinação de resíduos tóxicos, para onde se expandem obras de grande infraestrutura, e onde acontecem os grandes desastres ambientais.
Esses grandes impactos têm se dado em áreas de populações negras, de baixo poder econômico e de menos poder político. Talvez seja possível pensar numa relação regional no Brasil. Por exemplo, há problemas ambientais que ocorrem no Norte ou no Nordeste e não recebem, proporcionalmente, a mesma atenção do que episódios na região Sudeste e Sul.
AzM: Sua fala faz parecer que não é uma definição simples.
IS: Falar de moradia, de infraestrutura, de acesso a bens e serviços, dentro da complexidade ambiental, nos faz ver essas camadas. O racismo ambiental tem grandes camadas e, como estrutura, se coloca sobre essas populações.
AzM: Quais estratégias podem ser adotadas para combater o racismo ambiental?
IS: A primeira estratégia – e o movimento social negro e outros acadêmicos negros tem desenvolvido estudos e olhares para essas questões – é trazer o debate, dar reconhecimento, dar nome para o racismo ambiental, uma injustiça direcionada a populações periféricas e racializadas. Hoje no Brasil, a gente tá conseguindo. Não é que a população negra ou movimento social negro no Brasil não falavam sobre isso, mas diante de tantas invisibilidades, o meio ambiente só apareceu como pauta mais estruturada recentemente.
Em segundo, é o combate ao racismo. A maioria da população que não tem acesso ao saneamento básico no Brasil é periférica. É durante o levantamento diagnóstico desses dados que devemos entender quem são essas populações, e direcionar políticas públicas que de fato vão endereçar esses problemas.
Nossos diagnósticos para levar políticas públicas pra essas regiões deve envolver a compreensão dessa realidade brasileira, muitas vezes escamoteada sob o olhar de que vivemos uma democracia racial. Muitas vezes os tomadores de decisão e os grandes institutos de pesquisa consideram os recortes, e não a vida de pessoas que vivem ali.
AzM: Muito se fala em demorar menos no banho, reduzir o consumo de energia elétrica e outras iniciativas individuais para salvar o planeta. Essas atitudes podem realmente contribuir?
IS: Acredito que todos precisamos nos responsabilizar por aquilo que consumimos. Seja a água, seja uma roupa que a gente compra. Mesmo sabendo que eu não sou dona, nem tem histórico de nada disso na minha família, sei que o impacto de quem é dono de meio de produção é muito maior do que o individual. Ao longo do nosso desenvolvimento como sociedade, a gente foi se tirando desse lugar de responsáveis, de coabitantes. Tudo foi muito delegado ao outro.
Sou uma mulher negra vinda da Amazônia, moro no país Brasil. Sei que isso me deu acesso a determinadas coisas, e sei ao que não me deu acesso. Por conta disso, meu impacto no meio ambiente é muito diferente do de outras pessoas. Digo isso para lembrar que não há só duas opções.
AzM: Pode explicar melhor?
IS: Há grandes corporações, que lucram com o uso dos bens naturais. Elas são as que mais consomem água, por exemplo. Mas, ainda assim, [há] uma cobrança de populações que nunca tiveram acesso a determinados bens e serviços, como alimentação, saneamento. Falo de pessoas que nunca tiveram acesso à água constante para tomar banho. Agora, elas precisam economizar água?
AzM: Qual é o papel das políticas governamentais na luta contra as mudanças climáticas?
IS: Eu diria que a política de adaptação. Em boa parte do planeta, já vemos que a temperatura já se manteve constante, 1,5 °C acima da média [esperada]. Se quando tu eras criança se falava que ia ter dificuldade de acesso à água, que o clima ia mudar, o clima já mudou. Infelizmente, nossas políticas públicas estão muito aquém do que a gente precisa, como entender que em momentos de cheia, de intensas chuvas, precisamos de um plano estratégico para informar essa população. Precisamos antever se as previsões meteorológicas já dizem que determinado municípios ou regiões vão sofrer com seca, ou como manter água para abastecimento dessa população por serviços, como funciona para as atividades econômicas, etc.
A tendência é que a gente precise entender os cenários e adaptar o nosso cotidiano. Ainda não temos isso, e não é só o Brasil. Isso é planetário.
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AzM: Um levantamento das Nações Unidas revelou que mulheres e crianças têm 14 vezes mais probabilidades de morrer do que os homens durante uma catástrofe. Quais as possíveis razões?
IS: Não li o estudo, então, vou falar um pouco de senso comum pensando na desproporcionalidade. As crianças e os idosos são dois grupos populacionais muito vulneráveis, no sentido de saúde, quando falamos de mudança do clima, seja em eventos de desastres, cheias, inundações, seja em calor extremo. No Brasil, ainda temos mortalidade infantil e doenças de veiculação hídrica, por exemplo.
Num cenário de desastre, o cotidiano é completamente alterado por perdas econômicas e sociais. Tudo de um determinado bairro, de uma determinada cidade, muda, e as relações que existiam ali de alguma forma são rompidas. E no Brasil, as mulheres, principalmente as negras, têm esse papel de estar à frente de suas casas, no cuidado do lar.