Duas pessoas do mesmo gênero se conhecem e vivem uma relação sexual consentida. Não é a primeira experiência, nem de um lado, nem do outro. Mas cada uma enxerga a própria orientação sexual de um jeito. Uma se vê como bissexual, a outra como heteroflexível. Pessoas que, apesar de terem experiências sexuais com outras do mesmo gênero, ainda se veem como héteros. Esse termo que ganhou popularidade nos últimos anos e abriu um questionamento: orientação sexual válida ou homofobia internalizada que impede as pessoas de reconhecerem o próprio desejo?
Um artigo publicado pela Universidade de Oregon, em 2017, fala sobre um movimento chamado Bud Sex – uma expressão da heteroflexibilidade. Homens rurais que fazem sexo com outros homens, sem envolvimento romântico. A maior parte preferia parceiros brancos, heterossexuais e masculinos. Alguns colocavam esse tipo de encontro num lugar “menos ameaçador ao casamento do que o sexo extraconjugal com mulheres”. O que, na percepção deles, ajudava a manter uma parte de suas vidas, que descreveram como, “central para sua heterossexualidade”.
Anos antes, em 2015, a pesquisadora Chelsea Reynolds também encontrou algo parecido. Ela analisou mais de 400 anúncios em um site de relacionamento. Todos tinham algo em comum: mulheres que procuravam outras mulheres para um sexo casual. Mas, como se declararam nos anúncios, eram “claramente heterossexuais”.
Vivências e experiências como essa sempre existiram na sociedade, mas a discussão sobre legitimidade e a popularidade de sexualidades fluídas é atual. “A gente sai daquela fixação ou daquela rigidez de pensar numa orientação sexual e entendemos que a sexualidade realmente é fluida, diversa”, explica Breno Rosostolato, educador e terapeuta sexual.
Breno considera que a heteroflexibilidade deve ser encarada com naturalidade, porque a forma de cada pessoa sentir e entender o próprio desejo é particular. Reconhecer isso, segundo ele, é lidar com as várias possibilidades da sexualidade humana. Algo que só a própria pessoa pode entender com profundidade. “A orientação sexual é autodeclarada. Então a pessoa tem experiências, mas se entende enquanto hétero”, diz.
Sem reconhecimento
A heteroflexibilidade não é reconhecida formalmente como uma orientação sexual pela Organização Mundial da Saúde, (OMS). O que é diferente da heterossexualidade, da homossexualidade, da bissexualidade, da pansexualidade e da assexualidade. “Ela é mais vista como um comportamento – dentro do espectro da sexualidade humana”, explica Renata Pazos, psicóloga junguiana e especialista em saúde LGBTQIAPN+.
Por não ter a validação formal de órgãos importantes de saúde, o termo é constantemente questionado. “E é uma armadilha porque a bissexualidade, pansexualidade ou assexualidade já passaram de alguma forma por essa essa descrença”, pontua Renata.
Homofobia internalizada?
Assim como os bud sex, os g0ys também se identificam como héteros. Um dos materiais disponíveis na internet sobre eles é um site. A página é apresentada como: “o recurso de informação para homens que amam homens, mas NÃO se identificam com o termo gay”. A troca do “A” pelo “0” é um reforço dessa diferenciação entre os termos – gays e g0ys. No topo da página há um banner que diz: amor, confiança, respeito, discrição e masculinidade.
Mesmo se relacionando com pessoas do mesmo gênero, os g0ys são contra relações sexuais que envolvam sexo anal. Prática que eles consideram “suja, perigosa, degradante e totalmente antimasculina”. Além da homofobia, parte dos discursos também são repletos de machismo.
Para Renata Pazos é possível reconhecer a heteroflexibilidade num lugar genuíno e válido, sem ignorar que, para alguns indivíduos, a heteroflexibilidade pode ser uma defesa. “Como uma forma de explorar a sexualidade, sem que haja o contato com o estigma, o preconceito”.
“Nada vai invalidar a luta da comunidade.”
Julio Pinheiro Cardia está envolvido na luta por direitos da população LGBTQIAPN+ há mais de 20 anos. Ele defende que o debate sobre a heteroflexibilidade é importante, inclusive para a própria comunidade. “A gente tem que se adequar às diversas nuances do que a gente mesmo criou. A gente criou esse mundo de possibilidades,” diz ele que é ceo do Centro LGBTQIA+
Para Julio é fundamental não engessar a sexualidade, a orientação sexual e a identidade de gênero, porque isso limitaria o conhecimento das pessoas sobre elas mesmas. Já sobre o risco da heteroflexibilidade apagar a luta histórica de pessoas homoafetivas, ele é firme: “A liberdade tem que existir. A liberdade tem que ser a base do do da nossa luta. Nada vai invalidar a luta da comunidade.”